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sábado, 12 de maio de 2012

FREI DEMÉTRIUS - INTRODUÇÃO BÍBLICA - Como a Bíblia chegou até nós - PARTE 1:




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 ISBN 85-7367-026-6
Categoria: Referência
Este livro foi publicado em inglês com o título
From God to us: how we got our Bible
por Moody Press
© 1974 por The Moody Bible Institute of Chicago
© 1997 por Editora Vida
Tradutor: Oswaldo Ramos
Editor: Fabiani Medeiros
Todos os direitos reservados na língua portuguesa por
Editora Vida, Rua Júlio de Castilhos, 280
03059-000 São Paulo, SP—Telefax (011) 292-8677
As citações bíblicas foram extraídas da Edição Contemporânea da
Tradução de João Ferreira de Almeida, publicada pela Editora Vida.
Capa: Citara Editora/Grace Arruda
contra-capa
INTRODUÇÃO BÍBLICA
Como a Bíblia chegou até nós
De onde nos veio a Bíblia? Como podemos ter certeza de que só os
livros certos foram incluídos na Bíblia? A Bíblia contém erros? Quais são
as cópias mais antigas da Bíblia de que dispomos? Como podemos ter
certeza de que o texto da Bíblia não foi mudando ao longo dos anos? Por
que há tantas traduções da Bíblia, e qual delas devo usar? Essas são apenas
algumas das muitas perguntas importantes acerca da Bíblia, cujas respostas
são debatidas neste livro.
Com simplicidade e clareza, os autores discutem os seguintes
aspectos, dentre outros: a inspiração, o cânon bíblico, os principais
manuscritos, a crítica textual, as traduções mais antigas e as versões
modernas. À medida que vão cobrindo todo o campo da Introdução ao
Estudo da Bíblia, encontram-se por todas as páginas do livro explicações
cuidadosas dos pontos mais significativos.
Este livro é ideal para Seminários e Institutos Bíblicos, estudo bíblico
em grupo, para classes de Escola Dominical e para o estudo pessoal da
Bíblia.
Norman L. Geisler é catedrático de Teologia Sistemática no Seminário
Teológico de Dallas.
William E. Nix é consultor editorial e educacional em Dallas, no Texas.
0214-3
Categoria: Referência
Conteúdo
1. O caráter da Bíblia....................................................................................6
2. A natureza da inspiração.........................................................................15
3. A inspiração do Antigo Testamento ........................................................26
4. A inspiração do Novo Testamento..........................................................40
5. Evidências da inspiração da Bíblia.........................................................52
6. As características da canonicidade .........................................................62
7. O desenvolvimento do cânon do Antigo Testamento .............................75
8. A extensão do cânon do Antigo Testamento...........................................86
9. O desenvolvimento do cânon do Novo Testamento .............................102
10. A extensão do cânon do Novo Testamento.........................................113
11. As línguas e os materiais da Bíblia.....................................................126
12. Os principais manuscritos da Bíblia ...................................................140
13. Outros testemunhos de apoio ao texto bíblico....................................151
14. O desenvolvimento da crítica textual .................................................159
15. A recuperação do texto da Bíblia........................................................175
16. Traduções e Bíblias aramaicas, siríacas e afins ..................................189
17. Traduções gregas e afins.....................................................................202
18. Traduções latinas e afins.....................................................................215
19. As primeiras traduções para o inglês ..................................................227
20. As traduções da Bíblia para o inglês moderno ...................................241
21. As traduções para o português ............................................................255
1. O caráter da Bíblia
A Bíblia é um livro singular. Trata-se de um dos livros mais antigos
do mundo e, no entanto, ainda é o bestseller mundial por excelência. É
produto do mundo oriental antigo; moldou, porém, o mundo ocidental
moderno. Tiranos houve que já queimaram a Bíblia, e os crentes a
reverenciam. É o livro mais traduzido, mais citado, mais publicado e que
mais influência tem exercido em toda a história da humanidade.
Afinal, que é que constitui esse caráter inusitado da Bíblia? Como foi
que ela se originou? Quando e como assumiu sua forma atual? Que
significa "inspiração" da Bíblia? São essas as perguntas para as quais se
voltará o nosso interesse neste capítulo introdutório.
A estrutura da Bíblia
A palavra Bíblia (Livro) entrou para as línguas modernas por
intermédio do francês, passando primeiro pelo latim biblia, com origem no
grego biblos. Originariamente era o nome que se dava à casca de um
papiro do século xi a.C. Por volta do século II d.C, os cristãos usavam a
palavra para designar seus escritos sagrados.
Os dois testamentos da Bíblia
A Bíblia compõe-se de duas partes principais: o Antigo Testamento e
o Novo Testamento. O Antigo Testamento foi escrito pela comunidade
judaica, e por ela preservado um milênio ou mais antes da era de Jesus.
O Novo Testamento foi composto pelos discípulos de Cristo ao longo
do século I d.C.
A palavra testamento, que seria mais bem traduzida por "aliança", é
tradução de palavras hebraicas e gregas que significam "pacto" ou "acordo"
celebrado entre duas partes ("aliança"). Portanto, no caso da Bíblia, temos
o contrato antigo, celebrado entre Deus e seu povo, os judeus, e o pacto
novo, celebrado entre Deus e os cristãos.
Estudiosos cristãos frisaram a unidade existente entre esses dois
testamentos da Bíblia sob o aspecto da Pessoa de Jesus Cristo, que
declarou ser o tema unificador da Bíblia.1 Agostinho dizia que o Novo
Testamento acha-se velado no Antigo Testamento, e o Antigo, revelado no
Novo. Outros autores disseram o mesmo em outras palavras: "O Novo
Testamento está no Antigo Testamento ocultado, e o Antigo, no Novo
revelado". Assim, Cristo se esconde no Antigo Testamento e é desvendado
no Novo. Os crentes anteriores a Cristo olhavam adiante com grande
expectativa, ao passo que os crentes de nossos dias vêem em Cristo a
concretização dos planos de Deus.
As seções da Bíblia
A Bíblia divide-se comumente em oito seções, quatro do Antigo
testamento e quatro do Novo.



--------------
1 V. Christ, the theme of the Bible, de Norman Geisler (Chicago, Moody Press, 1968).


A divisão do Antigo Testamento em quatro seções baseia-se na
disposição dos livros por tópicos, com origem na tradução das Escrituras
Sagradas para o grego. Essa tradução, conhecida como a Versão dos
septuaginta (LXX), iniciara-se no século III a.C. A Bíblia hebraica não
segue essa divisão tópica dos livros, em quatro partes. Antes, emprega-se
uma divisão de três partes, talvez baseada na posição oficial de seu autor.
Os cinco livros de Moisés, que outorgou a lei, aparecem em primeiro lugar.
Seguem-se os livros dos homens que desempenharam a função de profetas
Por fim, a terceira parte contém livros escritos por homens que, segundo se
cria, tinham o dom da profecia, sem serem profetas oficiais. É por isso que
o Antigo Testamento hebraico apresenta a estrutura do quadro da página
seguinte.
A razão dessa divisão das Escrituras hebraicas em três partes
encontra-se na história judaica. É provável que o testemunho mais antigo
dessa divisão seja o prólogo ao livro Siraque, ou Eclesiástico, durante o
século II a.C. O Mishna(ensino) judaico, Josefo, o primeiro historiador
judeu, e a tradição judaica posterior também deram prosseguimento a essa
divisão tríplice de suas Escrituras.

FREI DEMÉTRIUS - INTRODUÇÃO BÍBLICA - Como a Bíblia chegou até nós - PARTE 2:


O Novo Testamento faz uma possível alusão a uma divisão em três
partes do Antigo Testamento, quando Jesus disse: "... era necessário que se
cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, nos Profetas
e nos Salmos" (Lc 24.44).
A despeito do fato de o Judaísmo ter mantido uma divisão tríplice até
a presente data, a Vulgata latina, de Jerônimo, e as Bíblias posteriores a ela
seguiriam o formato mais tópico das quatro partes em que se divide a
septuaginta. Se combinarmos essa divisão com outra, mais natural e
largamente aceita, também de quatro partes, do Novo Testamento, a Bíblia
pode ser divida na estrutura geral e cristocêntrica apresentada no quadro da
página seguinte.
Ainda que não existam razões de ordem divina para dividirmos a
Bíblia em oito partes, a insistência cristã em que as Escrituras devam ser
entendidas tendo Cristo por centro baseia-se nos ensinos do próprio Cristo.
Cerca de cinco vezes no Novo Testamento, Jesus afirmou ser ele próprio o
tema do Antigo Testamento (Mt 5.17; Lc 24.27; Jo 5.39; Hb 10.7). Diante
dessas declarações, é natural que analisemos essa divisão das Escrituras,
em oito partes, por tópicos, sob o aspecto de seu tema maior — Jesus
Cristo.

Capítulos e versículos da Bíblia
As Bíblias mais antigas não eram divididas em capítulos e versículos.
Essas divisões foram feitas para facilitar a tarefa de citar as Escrituras.
Stephen Langton, professor da Universidade de Paris e mais tarde
arcebispo da Cantuária, dividiu a Bíblia em capítulos em 1227. Robert
Stephanus, impressor parisiense, acrescentou a divisão em versículos em
1551 e em 1955. Felizmente, estudiosos judeus, desde aquela época,
adotaram essa divisão de capítulos e versículos para o Antigo Testamento.
A inspiração da Bíblia
A característica mais importante da Bíblia não é sua estrutura e sua
forma, mas o fato de ter sido inspirada por Deus. Não se deve interpretar
de modo errôneo a declaração da própria Bíblia a favor dessa inspiração.
Quando falamos de inspiração, não se trata de inspiração poética, mas de
autoridade divina. A Bíblia é singular; ela foi literalmente "soprada por
Deus". A seguir examinaremos o que significa isso.
Uma definição de inspiração
Embora a palavra inspiração seja usada apenas uma vez no Novo
Testamento (2Tm 3.16) e outra no Antigo (Jó 32.8), o processo pelo qual
Deus transmite sua mensagem autorizada ao homem é apresentado de
muitas maneiras. Um exame das duas grandes passagens a respeito da
inspiração encontradas no Novo Testamento, poderá ajudar-nos a entender
o que significa a inspiração bíblica.
Descrição bíblica de Inspiração
Assim escreveu Paulo a Timóteo: "Toda Escritura é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para
instruir em justiça" (2Tm 3.16). Em outras palavras, o texto sagrado do
Antigo Testamento foi "soprado por Deus" (gr., theopneustos) e, por isso,
dotado da autoridade divina para o pensamento e para a vida do crente. A
passagem correlata de 1Coríntios 2.13 realça a mesma verdade. Disto
também falamos", escreveu Paulo, "não com palavras de sabedoria
humana, mas com as que o Espírito Santo ensina, comparando as coisas
espirituais com as espirituais." Quaisquer palavras ensinadas pelo Espírito
Santo são palavras divinamente inspiradas.
A segunda grande passagem do Novo Testamento a respeito da
inspiração da Bíblia está em 2Pedro 1.21. "Pois a profecia nunca foi
produzida por vontade dos homens, mas os homens santos da parte de
Deus falaram movidos pelo Espírito Santo." Em outras palavras, os
profetas eram homens cujas mensagens não se originaram de seus próprios
impulsos, mas foram "sopradas pelo Espírito". Pela revelação, Deus falou
aos profetas de muitas maneiras (Hb 1.1): mediante anjos, visões, sonhos,
vozes e milagres. Inspiração é a forma pela qual Deus falou aos homens
mediante os profetas. Mais um sinal de que as palavras dos profetas não
partiam deles próprios, mas de Deus é o fato de eles sondarem seus
próprios escritos a fim de verificar "qual o tempo ou qual a ocasião que o
Espírito de Cristo, que estava neles, indicava, ao dar de antemão
testemunho sobre os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e sobre as
glorias que os seguiriam" (l Pe 1.11).
Fazendo uma combinação das passagens que ensinam sobre a
inspiração divina, descobrimos que a Bíblia é inspirada no seguinte
sentido: homens movidos pelo Espírito, escreveram palavras sopradas por
Deus, as quais são a fonte de autoridade para a fé e para a prática cristã.
Vamos a seguir analisar com mais cuidado esses três elementos da
inspiração.
Definição teológica da inspiração
Na única vez em que o Novo Testamento usa a palavra inspiração,
ela se aplica aos escritos, não aos escritores. A Bíblia é que é inspirada, e
não seus autores humanos. O adequado, então, é dizer que: o produto e
inspirado os produtores não. Os autores indubitavelmente escreveram e
Falaram sobre muitas coisas, como, por exemplo, quando se referiram a
assuntos mundanos, pertinentes a esta vida, os quais não foram
divinamente inspirados. Todavia, visto que o Espírito Santo, conforme
ensina Pedro tomou posse dos homens que produziram os escritos
inspirados, podemos, por extensão, referir-nos à inspiração em sentido
mais amplo. Tal sentido mais amplo inclui o processo total por que alguns
homens, movidos pelo Espírito Santo, enunciaram e escreveram palavras
emanadas boca do Senhor; e, por isso mesmo, palavras dotadas da
autoridade divina. É um processo total de inspiração que contém os três
elementos essenciais: a causalidade divina, a mediação profética e a
autoridade escrita.
Causalidade divina. Deus é a Fonte Primordial da inspiração da
Bíblia. O elemento divino estimulou o elemento humano. Primeiro Deus
falou aos profetas e, em seguida, aos homens, mediante esses profetas.
Deus revelou-lhes certas verdades da fé, e esses homens de Deus as
registraram. O primeiro fator fundamental da doutrina da inspiração
bíblica, e o mais importante, é que Deus é a fonte principal e a causa
primeira da verdade bíblica. No entanto, não é esse o único fator.
Mediação profética. Os profetas que escreveram as Escrituras não
eram autômatos. Eram algo mais que meros secretários preparados para
anotar o que se lhes ditava. Escreveram segundo a intenção total do
coração, segundo a consciência que os movia no exercício normal de sua
tarefa, com seus estilos literários e seus vocabulários individuais. As
personalidades dos profetas não foram violentadas por uma intrusão
sobrenatural. A Bíblia que eles produziram é a Palavra de Deus, mas
também é a palavra do homem. Deus usou personalidades humanas para
comunicar proposições divinas. Os profetas foram a causa imediata dos
textos escritos, mas Deus foi a causa principal.
Autoridade escrita. O produto final da autoridade divina em
operação por meio dos profetas, como intermediários de Deus, é a
autoridade escrita de que se reveste a Bíblia. A Escritura "é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para
instruir em justiça". A Bíblia é a última palavra no que concerne a assuntos
doutrinários e éticos. Todas as controvérsias teológicas e morais devem ser
trazidas ao tribunal da Palavra escrita de Deus. As Escrituras receberam
sua autoridade do próprio Deus, que falou mediante os profetas. No
entanto, são os escritos proféticos e não os escritores desses textos
sagrados que possuem e retêm a resultante autoridade divina. Todos os
profetas morreram; os escritos proféticos prosseguem.
Em suma, a definição adequada de inspiração precisa ter três fatores
fundamentais: Deus, o Causador original, os homens de Deus, que
serviram de instrumentos, e a autoridade escrita, ou Sagradas Escrituras,
que são o produto final.
Algumas distinções importantes
A inspiração em contraste com a revelação e a iluminação
Há dois conceitos inter-relacionados que nos ajudam a esclarecer,
pela contraposição, o que significa inspiração. São eles a revelação e a
iluminação. Revelação diz respeito à exposição da verdade. Iluminação, à
devida compreensão dessa verdade descoberta. No entanto, a inspiração
não consiste nem em uma, nem em outra. A revelação prende-se à origem
da verdade e à sua transmissão; a inspiração relaciona-se com a recepção e
o registro da verdade. A iluminação ocupa-se da posterior apreensão e
compreensão da verdade revelada. A inspiração que traz a revelação escrita
aos homens não traz em si mesma garantia alguma de que os homens a
entendam. É necessário que haja iluminação do coração e da mente. A
revelação é uma abertura objetiva; a iluminação é a compreensão subjetiva
da revelação; a inspiração é o meio pelo qual a revelação se tornou uma
exposição aberta e objetiva. A revelação é o fato da comunicação divina; a
inspiração é o meio; a iluminação, o dom de compreender essa
comunicação.
Inspiração dos originais, não das cópias
A inspiração e a conseqüente autoridade da Bíblia não se estendem
automaticamente a todas as cópias e traduções da Bíblia. Só os manuscritos
originais, conhecidos por autógrafos, foram inspirados por Deus. Os erros
e as mudanças efetuados nas cópias e nas traduções não podem ser
atribuídos à inspiração original. Por exemplo, 2Reis 8.26 diz que Azarias
tinha 22 anos de idade quando foi coroado rei, enquanto 2Crônicas 22.2 diz
que tinha 42 anos. Não é possível que ambas as informações estejam
corretas. O original é autorizado; a cópia errônea não tem autoridade.
Outros exemplos desse tipo de erro podem encontrar-se nas atuais cópias
das Escrituras (e.g., cf. I Rs 4.26 e 2Cr 9.25). Portanto, uma tradução ou
cópia só é autorizada à medida que reproduz com exatidão os autógrafos.
Veremos posteriormente até que ponto as cópias da Bíblia são exatas
(cap. 15), segundo a ciência da crítica textual. Por ora basta-nos observar
que o grandioso conteúdo doutrinário e histórico da Bíblia tem sido
transmitido de geração a geração, ao longo da história, sem mudanças nem
perdas substanciais. As cópias e as traduções da Bíblia, encontradas no
século xx, não detêm a inspiração original, mas contêm uma inspiração
derivada, uma vez que são cópias fiéis dos autógrafos. De uma perspectiva
técnica, só os autógrafos são inspirados; todavia, para fins práticos, a
Bíblia nas línguas de nossa época, por ser transmissão exata dos originais,
é a Palavra de Deus inspirada.
Visto que os originais não mais existem, alguns críticos têm objetado
à inerrância de autógrafos que não podem ser examinados e nunca foram
vistos. Eles perguntam como é possível afirmar que os originais não
continham erro, se não podem ser examinados. A resposta é que a
inerrância bíblica não é um fato conhecido empiricamente, mas uma crença
baseada no ensino da Bíblia a respeito de sua inspiração, bem como
baseada na natureza altamente precisa da grande maioria das Escrituras
transmitidas e na ausência de qualquer prova em contrário. Afirma a Bíblia
ser a declaração de um Deus que não pode cometer erro. É verdade que
nunca se descobriram os originais infalíveis da Bíblia, mas tampouco se
descobriu um único autógrafo original falível. Temos, pois, manuscritos
que foram copiados com toda precisão e traduzidos para muitas línguas,
dentre as quais o português. Portanto, para todos os efeitos de doutrina e de
dever, a Bíblia como a temos hoje é representação suficiente da Palavra de
Deus, cheia de autoridade.
Inspiração do ensino, mas não de todo o conteúdo da Bíblia
Cumpre ressaltar também que só o que a Bíblia ensina foi inspirado
por Deus e não apresenta erro; nem tudo que está na Bíblia ficou isento de
erro. Por exemplo, as Escrituras contêm o relato de muitos atos maus,
pecaminosos, mas de modo algum a Bíblia os elogia; tampouco os
recomenda. Ao contrário, condena essas práticas malignas. A Bíblia chega
a narrar algumas das mentiras de Satanás (e.g., Gn 3.4). Portanto, a simples
existência dessa narração não significa que a Bíblia ensine serem
verdadeiras essas mentiras. A única coisa que a inspiração divina garante
aqui é que se trata de um registro verdadeiro de uma mentira satânica, de
uma perversidade real de Satanás.
Às vezes não está perfeitamente claro se a Bíblia registra apenas um
mero relato do que alguém disse ou fez, ou se ela está ensinando que
devemos proceder de igual forma. Por exemplo, estará a Bíblia ensinando
que tudo quanto os amigos de Jó disseram é verdade? Seriam todos os
ensinos daquele homem "debaixo do sol", em Eclesiastes, ensino de Deus
ou mero registro fiel de pensamentos vãos? Seja qual for a resposta, o
estudante da Bíblia é admoestado a não julgar verdadeiro tudo quanto a
Bíblia afirma só por ter aparência de verdade. O estudante da Bíblia
precisa procurar seu verdadeiro ensino, sem atribuir verdade a tudo quanto
está escrito em suas páginas. De fato, a Bíblia registra muitas coisas que
ela de modo algum recomenda, como a asserção: "Não há Deus" (Sl 14.1).
Em todas as passagens, o que a Bíblia está declarando deve ser estudado
com cuidado, a fim de se apurar o que ela está ensinando na verdade. Só o
que a Bíblia ensina é que é inspirado, e não todas as palavras relacionadas
a todo o seu conteúdo.
Resumindo, a Bíblia é um livro incomum. Compõe-se de dois
testamentos formados de 66 livros, os quais declaram ou comprovam a
inspiração divina. Com inspiração queremos dizer que os manuscritos
originais da Bíblia nos foram concedidos pela revelação de Deus e,
exatamente por isso, detêm a absoluta autoridade de Deus, para formar o
pensamento e a vida cristã. Isso significa que tudo quanto a Bíblia ensina
constitui tribunal de apelação infalível. O próximo tópico de estudo diz
respeito à natureza exata da inspiração da Bíblia.
2. A natureza da inspiração
O primeiro grande elo da cadeia comunicativa "de Deus para nós"
chama-se inspiração. Há diversas teorias a respeito da inspiração. Algumas
delas não se coadunam com o ensino bíblico sobre o assunto. Nosso
propósito, portanto, neste capítulo, tem dois aspectos: primeiro, examinar
as teorias a respeito da inspiração e, segundo, apurar com a máxima
precisão o que está implícito no ensino da Bíblia a respeito de sua própria
inspiração.
As várias teorias a respeito da inspiração
Ao longo da história, as teorias a respeito da inspiração da Bíblia têm
variado segundo as características essenciais de três movimentos
teológicos: a ortodoxia, o modernismo e a neo-ortodoxia. Ainda que essas
três perspectivas não se limitem a um único período, suas manifestações
primordiais são características de três períodos sucessivos na história da
igreja.
Na maior parte dessa história, prevaleceu a visão ortodoxa, a saber: a
Bíblia é a Palavra de Deus. Com o surgimento do modernismo, muitas
pessoas vieram a crer que a Bíblia meramente contém a Palavra de Deus.
Mais recentemente, sob a influência do existencialismo contemporâneo, os
teólogos neo-ortodoxos têm ensinado que a Bíblia torna-se a Palavra de
Deus quando a pessoa tem um encontro pessoal com Deus em suas
páginas.
Ortodoxia: a Bíblia É a Palavra de Deus
Por cerca de 18 séculos de história da igreja, prevaleceu a opinião
ortodoxa da inspiração divina. Os pais da igreja, em geral, com raras
manifestações menos importantes em contrário, ensinaram firmemente que
a Bíblia é a Palavra de Deus escrita. Teólogos ortodoxos ao longo dos
séculos vêm ensinando, todos de comum acordo, que a Bíblia foi inspirada
verbalmente, i.e., é o registro escrito por inspiração de Deus. No entanto,
tem havido tentativas de procurar explicação para o fato de o registro
escrito ser a Palavra de Deus ao mesmo tempo que o Livro obviamente foi
composto por autores humanos, dotados de estilos pessoais diferentes uns
dos outros; essas tentativas conduziram os estudiosos ortodoxos a duas
opiniões divergentes. Alguns abraçaram a idéia do "ditado verbal",
afirmando que os autores humanos da Bíblia registraram apenas o que
Deus lhes havia ditado, palavra por palavra. De outro lado, estão os
estudiosos que preferiam a teoria do "conceito inspirado", segundo a qual
Deus só concedeu aos autores pensamentos inspirados, e os autores
tiveram liberdade de revesti-los com palavras próprias.
Ditado verbal. Na obra de John R. Rice, Our God-breathed book —
the Bible [Nosso livro soprado por Deus — a Bíblia),2 encontramos uma
apresentação clara e bem ordenada do ditado verbal. O autor descarta a
idéia de que o ditado verbal seja mecânico, sustentando que Deus ditou sua
Palavra mediante a personalidade do autor humano. É que Deus, por sua
atuação especial e providência, foi quem formou as personalidades sobre as
quais posteriormente o Espírito Santo haveria de soprar seu ditado palavra
por palavra. Assim, argumenta Rice, Deus havia preparado de antemão os
estilos particulares que ele próprio desejava, a fim de produzir as palavras
exatas, ao usar estilos e vocabulários predeterminados, encontráveis nos
diferentes autores humanos.
.O resultado final, então, foi um ditado palavra por palavra da parte
de Deus, as Escrituras Sagradas.
Conceitos inspirados. Em sua Systematic theology [Teologia
sistemática], A. H. Strong apresenta uma visão que vem sendo denominada
inspiração conceitual.3 Deus teria inspirado apenas os conceitos, não as
expressões literárias particulares com que cada autor concebeu seus textos.
Deus teria dado seus pensamentos aos profetas, que tiveram toda a
liberdade de exprimi-los em seus termos humanos. Dessa maneira, Strong
esperava evitar quaisquer implicações mecanicistas derivadas do ditado
verbal e ainda preservar a origem divina das Escrituras. Deus concedeu a
inspiração conceitual, e os homens de Deus forneceram a expressão verbal
característica de seus estilos próprios.
Modernismo: a Bíblia CONTÊM a Palavra de Deus
Ao surgir o idealismo germânico e a crítica da Bíblia (v. cap. 14),
surgiu também uma nova visão evoluída da inspiração bíblica, a par do
modernismo ou liberalismo teológico. Opondo-se à opinião ortodoxa
tradicional de que a Bíblia é a Palavra de Deus, os modernistas ensinam
que a Bíblia meramente contém a Palavra de Deus. Certas partes dela são
2 Murfreesboro, Sword of tht Lord, 1969
3 Grand Rapids, Revell, 1907
divinas, expressam a verdade, mas outras são obviamente humanas e
apresentam erros. Tais autores acham que a Bíblia foi vítima de sua época,
exatamente como acontece a quaisquer outros livros. Afirmam que ela teria
incorporado muito das lendas, dos mitos e das falsas crenças relacionadas à
ciência. Sustentam então que, pelo fato de esses elementos não terem sido
inspirados por Deus, devem ser rejeitados pelos homens iluminados de
hoje; tais erros seriam resquícios de uma mentalidade primitiva indigna de
fazer parte do credo cristão. Só as verdades divinas, entremeadas nessa
mistura de ignorância antiga e erro grosseiro, é que de facto teriam sido
inspiradas por Deus.
O Conceito da iluminação. Defendem alguns estudiosos que as
"partes inspiradas" da Bíblia resultam de uma espécie de iluminação
divina, Mediante a qual Deus teria concedido uma profunda percepção
religiosa a alguns homens piedosos. Tais percepções teriam sido usufruídas
com diferentes gradações de compreensão, tendo sido registradas com
mistura de idéias religiosas errôneas e crendices da ciência, comuns
naqueles dias. Daí resultaria um livro, a Bíblia, que expressa vários graus
de inspiração, dependendo da profundidade da iluminação religiosa
experimentada por qualquer dos autores.
O conceito da intuição. Na outra extremidade da visão modernista
estão os estudiosos que negam totalmente a existência de algum elemento
divinos na composição da Bíblia. Para eles a Bíblia não passa de um
caderno de rascunho em que os judeus registravam suas lendas, histórias,
poemas etc., sem nenhum valor histórico.4 O que alguns denominam
inspiração divina não seria outra coisa senão intensa intuição humana.
Dentro desse folclore judaico a que se deu o nome de Bíblia, encontram-se
alguns exemplos significativos de elevada moral e de gênio religioso.
Todavia, essas percepções espirituais são puramente naturalistas. Em
absolutamente nada, passam de intuição humana; não existiria inspiração
sobrenatural, tampouco iluminação.
4 Henrik W. van LOON, Story of the Bible, Garden City, Garden City, 1941, p. 227
Neo-Ortodoxia: a Bíblia torna-se a Palavra de Deus
No início do século xx, a reviravolta nos acontecimentos mundiais e
a influência do pai dinamarquês do existencialismo, Soren Kierkegaard,
deram origem a uma nova reforma na teologia européia. Muitos estudiosos
começaram a voltar-se de novo para as Escrituras, a fim de ouvir nelas a
voz de Deus. Sem abrir mão de suas opiniões críticas a respeito da Bíblia,
começaram a levar a Bíblia a sério, por ser a fonte da revelação de Deus
aos homens. Criando um novo tipo de ortodoxia, afirmavam que Deus fala
aos homens mediante a Bíblia; as Escrituras tornam-se a Palavra de Deus
num encontro pessoal entre Deus e o homem.
À semelhança das outras teorias a respeito da inspiração da Bíblia, a
neo-ortodoxia desenvolveu duas correntes.
Na extremidade mais importante estavam os demitizadores, que
negam todo e qualquer conteúdo religioso importante, factual ou histórico,
nas páginas da Bíblia, e crêem apenas na preocupação religiosa existencial
sobre a qual medram os mitos. Na outra extremidade, os pensadores de
tendência mais evangélica tentam preservar a maior parte dos dados
factuais e históricos das Escrituras, mas sustentam que a Bíblia de modo
algum é revelação de Deus. Antes, Deus se revela na Bíblia nos encontros
pessoais; não, porém, de maneira proposicional.
Visão demitizante. Rudolf Bultmann e Shubert Ogden são
representantes característicos da visão demitizante. Ambos diferem entre
si, uma vez que Ogden não vê nenhum cerne histórico que dê consistência
aos mitos da Bíblia, embora Bultmann consiga enxergar isso. Ambos
concordam em que a Bíblia foi escrita em linguagem mitológica, a da
época de seus autores, época já passada e obsoleta. A tarefa do cristão
moderno é demitizar a Bíblia, ou seja, despi-la de seus trajes lendários,
mitológicos, e descobrir o conhecimento existencial a ela subjacente.
Afirma Bultmann que, a partir do momento que a Bíblia é despida desses
mitos religiosos, a pessoa encontra a verdadeira mensagem do amor
sacrificial de Deus em Cristo. Não é necessário que a pessoa se prenda a
uma revelação objetiva, histórica e proposicional, a fim de experimentar
essa verdade pessoal e subjetiva. Daí decorre que a Bíblia torna-se a
revelação de Deus aos homens, mediante uma interpretação adequada (i.e.,
demitizada), quando a pessoa depara com o amor absoluto, exposto no
mito do amor
altruísta de Deus em Cristo. Por isso, a Bíblia em si mesma não é
revelação alguma; é apenas uma expressão primitiva, mitológica, mediante
a qual Deus se revela pessoalmente, desde que demitizado da maneira
correta.
Encontro pessoal. A outra corrente da neo-ortodoxia, representada
por Karl Barth e Emil Brunner, nutre uma visão mais ortodoxa das
Escrituras. Barth reconhece que existem algumas imperfeições no registro
escrito (até mesmo nos autógrafos) e, no entanto, afirma que a Bíblia é a
fonte da revelação de Deus.5 Afirma ele que Deus nos fala mediante a
Bíblia-que ela é o veículo de sua revelação. Assim como um cão ouve a
voz de seu dono, gravada de modo imperfeito na gravação de uma fita ou
disco, assim também o cristão pode ouvir a voz de Deus que ressoa nas
Escrituras. Afirma Brunner que a revelação de Deus não é proposicional
(i.e., feita por meio de palavras).6 Assim, a Bíblia, como se nos apresenta
deixa de ser uma revelação de Deus, passando a ser mero registro da
revelação pessoal de Deus aos homens de Deus em eras passadas. Todavia,
sempre que o homem moderno se encontra com Deus, mediante as
Escrituras Sagradas, a Bíblia torna-se a Palavra de Deus para nós. Em
contraposição à visão ortodoxa, para os teólogos neo-ortodoxos a Bíblia
não seria um registro inspirado. Antes, é um registro imperfeito, que apesar
dessa mesma imperfeição, constitui o testemunho singular da revelação de
Deus. Quando Deus surge no registro escrito, de maneira pessoal, a fim de
falar ao leitor, a Bíblia nesse momento torna-se a Palavra de Deus para
esse leitor.
O ensino bíblico a respeito da inspiração
Muitas objeções têm sido levantadas contra as várias teorias da
inspiração, as quais partem de diferentes concepções, tendo variados graus
de legitimidade, dependentemente do ângulo de observação da pessoa que
as formula. Visto que o objetivo deste estudo é levar o leitor a compreender
o caráter da Bíblia, o critério analítico que escolhemos visa a avaliar todas
essas teorias, levando em consideração o que as Escrituras revelam a
5 Doctrine of the Word of God, Naperville, Allenson, 1956, v. 1 (Church dogmatics), p.592-5.
6 Theology of crisis New York, Scribner, 1929, p, 41
respeito de sua própria inspiração. Comecemos com o que a Bíblia ensina
formalmente sobre essa questão e, depois, examinemos o que se acha
logicamente implícito nesse ensino.
O que a própria Bíblia ensina a respeito de sua inspiração
No capítulo anterior examinamos de modo genérico o ensino de dois
grandes textos do Novo Testamento a respeito da inspiração (2Tm 3.16 e
2Pe 1.21). A Bíblia declara ser um livro dotado de autoridade divina,
resultante de um processo pelo qual homens movidos pelo Espírito Santo
escreveram textos inspirados (soprados) por Deus. Vamos agora examinar
em minúcias o que significa essa declaração.
A inspiração é verbal. Independentemente de outras afirmações que
possam ser formuladas a respeito da Bíblia, fica bem claro que esse livro
reivindica para si mesmo esta qualidade: a inspiração verbal. O texto
clássico de 2Timóteo 3.16 declara que as graphã, i.e., os textos, é que são
inspiradas. "Moisés escreveu todas as palavras do Senhor..." (Êx 24.4). O
Senhor ordenou a Isaías que escrevesse num livro a mensagem eterna de
Deus (Is 30.8). Davi confessou: "O Espírito do Senhor fala por mim, e a
sua palavra está na minha boca" (2Sm 23.2). Era a palavra do Senhor que
chegava aos profetas nos tempos do Antigo Testamento. Jeremias recebeu
esta ordem: "... não te esqueças de nenhuma palavra" (Jr 26.2).
No Novo Testamento, Jesus e seus apóstolos ressaltaram a revelação
registrada ao usar repetidamente a expressão "está escrito" (v. Mt 4.4,7; Lc
24.27,44). O apóstolo Paulo testemunhou: "... falamos, não com palavras
de sabedoria humana, mas com as que o Espírito Santo ensina..." (1Co
2.13). João nos adverte quanto a não "tirar quaisquer palavras do livro
desta profecia" (Ap 22.19). As Escrituras (i.e., os escritos) do Antigo
Testamento são continuamente mencionadas como Palavra de Deus. No
célebre sermão da montanha, Jesus declarou que não só as palavras, mas
até mesmo os pequeninos sinais diacríticos de uma palavra hebraica vieram
de Deus: "Em verdade vos digo que até que a terra e o céu passem, nem
um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido" (Mt 5.18).
Portanto, o que quer que se diga como teoria a respeito da inspiração das
Escrituras, fica bem claro que a Bíblia reivindica para si mesma toda a
autoridade verbal ou escrita. Diz a Bíblia que suas palavras vieram da parte
de Deus.
A inspiração é plena. A Bíblia reivindica a inspiração divina de todas
as suas partes. É inspiração plena, total, absoluta. "Toda Escritura é
divinamente inspirada..." (2Tm 3.16). Nenhuma parte das Escrituras
deixou de receber total autoridade doutrinária. A Escritura toda (i.e., o
Antigo Testamento integralmente), escreveu Paulo, "é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para
instruir em justiça" (2Tm 3.16). E foi além, ao escrever: "... tudo o que
outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito" (Rm 15.4). Jesus e
todos os autores do Novo Testamento exemplificam amplamente sua
crença firme na inspiração integral e completa do Antigo Testamento,
citando trechos de todas as Escrituras que eram para eles de autoridade, até
mesmo os que apresentam ensinos fortemente polêmicos. A criação de
Adão e de Eva, a destruição do mundo pelo dilúvio, o milagre de Jonas e o
grande peixe e muitos outros acontecimentos são mencionados por Jesus
deixando bem clara a autoridade deles (v. cap. 3). Todo trecho das
Sagradas Escrituras reivindica total e completa autoridade. A inspiração da
Bíblia é plena.
É claro que a inspiração plena estende-se apenas aos ensinos dos
autógrafos, como já afirmamos (cap. 1). Todavia, tudo quanto a Bíblia
ensina, quer no Antigo, quer no Novo Testamento, é integralmente dotado
de autoridade divina. Nenhum ensino das Escrituras deixou de ter origem
divina. O próprio Deus inspirou as palavras usadas para exprimir os
ensinos proféticos. Repitamos: a inspiração é plena, a saber, completa e
integral, abrangendo todas as partes da Bíblia.
A inspiração atribui autoridade. Fica, pois, saliente o fato de que a
inspiração concede autoridade indiscutível ao texto ou documento escrito.
Disse Jesus: "... a Escritura não pode ser anulada..." (Jo 10.35). Em
numerosas ocasiões o Senhor recorreu à Palavra de Deus escrita, que ele
considerava árbitro definitivo em questões de fé e de prática. O Senhor
recorreu às Escrituras como a autoridade para ele purificar o templo (Mc
11.17), para pôr em cheque a tradição dos fariseus (Mt 15.3,4) e para
resolver divergências doutrinárias (Mt 22.29). Até mesmo Satanás foi
repreendido por Cristo mediante a autoridade da Palavra escrita de Deus:
"Está escrito [...] Está escrito [...] Está escrito...". Jesus contra-atacou as
tentações de Satanás com a Palavra de Deus escrita (Mt 4.4,7,10).
Algumas vezes, Jesus declarou o seguinte: "... era necessário que se
cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, nos Profetas
e nos Salmos" (Lc 24.44). Todavia, é em outra declaração de Jesus que
encontramos apoio ainda mais forte do Senhor à autoridade inquestionável
das Escrituras: "É mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til sequer
da lei" (Lc 16.17). A Palavra de Deus não pode ser anulada. Provém de
Deus e está envolta na autoridade divina que o próprio Deus lhe concedeu.
Implicações da doutrina bíblica da Inspiração
Há certos fatos que, embora não formalmente apresentados na
doutrina da inspiração, acham-se implícitos. Vamos tratar aqui de três
deles: a igualdade entre o Antigo e o Novo Testamento, a variedade da
expressão literária e a inerrância do texto.
A inspiração diz respeito igualmente ao Antigo e ao Novo
Testamento. A maioria das passagens citadas acima a respeito da natureza
plena da inspiração refere-se diretamente ao Antigo Testamento. Com base
em que, então, podem aplicar-se (por extensão) ao Novo Testamento? A
resposta a essa pergunta é que o Novo Testamento, à semelhança do
Antigo, reivindica a virtude de ser Escritura Sagrada, escrito profético, e
toda a Escritura e todos os escritos proféticos devem ser considerados
inspirados por Deus.
De acordo com 2Timóteo 3.16, toda a Escritura é inspirada. Ainda
que a referência explícita, aqui, refira-se ao Antigo Testamento, é verdade
que o Novo Testamento também deve ser considerado Escritura Sagrada.
Pedro, por exemplo, classifica as cartas de Paulo como parte das "outras
Escrituras" do Antigo Testamento (2Pe 3.16). Em 1Timóteo 5.16, Paulo
cita o evangelho de Lucas (10.7), referindo-se a ele como "Escritura". Tal
fato é mais significativo ainda quando consideramos que nem Lucas, nem
Paulo fizeram parte do grupo dos doze apóstolos. Visto que as cartas de
Paulo e os escritos de Lucas (Lucas e Atos; v. At 1.1, Lc 1.1-4) foram
classificados como Escritura Sagrada, por implicação direta o resto do
Novo Testamento, escrito pelos apóstolos, também é considerado Escritura
Sagrada. Em suma, se "toda Escritura é divinamente inspirada" e o Novo
Testamento é considerado Escritura, decorre disso claramente que o Novo
Testamento é encarado com a mesma autoridade do Antigo. Na verdade, é
exatamente assim que os cristãos, desde o tempo dos apóstolos, têm
considerado o Novo Testamento. Eles o consideravam com a mesma
autoridade do Antigo Testamento.
Além disso, de acordo com 2Pedro 1.20,21, todas as mensagens
escritas de natureza profética foram dadas ou inspiradas por Deus. E, visto
que o Novo Testamento reivindica a natureza de mensagem profética,
segue-se que ele também reclama autoridade igual à dos escritos proféticos
do Antigo Testamento. João, por exemplo, refere-se ao livro do Apocalipse
da seguinte forma: "palavras da profecia deste livro" (Ap 22.18). Paulo
afirmou que a igreja estava edificada sobre o alicerce dos apóstolos e
profetas do Novo Testamento (Ef 2.20; 3.5). Visto que o Novo Testamento,
à semelhança do Antigo, é um texto dos profetas de Deus, ele possui por
essa razão a mesma autoridade dos textos inspirados do Antigo
Testamento.
A inspiração abarca uma variedade de fontes e de gêneros literários.
O fato de a inspiração ser verbal, ou escrita, não exclui o uso de
documentos literários e de gêneros literários diferentes entre si. As
Escrituras Sagradas não foram ditadas palavra por palavra, no sentido
comum que se atribui ao verbo ditar. Na verdade, há certos trechos
menores da Bíblia, como, por exemplo, os Dez Mandamentos, que Deus
outorgou diretamente ao homem (v. Dt 4.10), mas em parte alguma está
escrito ou fica implícito que a Bíblia é resultante de um ditado palavra por
palavra. Os autores das Sagradas Escrituras eram escritores e compositores,
não meros secretários, amanuenses ou estenógrafos.
Há vários fatores que contribuíram para a formação das Escrituras
Sagradas e dão forte apoio a essa afirmativa. Em primeiro lugar, existe uma
diferença marcante de vocabulário e de estilo de um escritor para outro.
Comparem-se as poderosas expressões literárias de Isaías com os tons
lamurientos de Jeremias. Compare-se a construção literária de suma
complexidade, encontrada em Hebreus, com o estilo simples de João.
Distinguimos facilmente a linguagem técnica de Lucas, o médico amado,
da linguagem de Tiago, formada de imagens pastorais.
Em segundo lugar, a Bíblia faz uso de documentos não-bíblicos,
como o Livro de Jasar (Js 10.13; 2Sm 1.18), o livro de Enoque (Jd 14) e
até o poeta Epimênedes (At 17.28). Somos informados de que muitos dos
provérbios de Salomão haviam sido editados pelos homens de Ezequias
(Pv 25.1). Lucas reconhece o uso de muitas fontes escritas sobre a vida de
Jesus, na composição de seu próprio evangelho (Lc 1.1-4).
Em terceiro lugar, os autores bíblicos empregavam vasta variedade
de gêneros literários; tal fato não caracteriza um ditado monótono em que
as palavras são pronunciadas uma após a outra, segundo o mesmo padrão.
Grande parte das Escrituras é formada de poesia (e.g., Jó, Salmos,
Provérbios). Os evangelhos contêm muitas parábolas. Jesus empregava a
sátira (v. Mt 19.24), Paulo usava alegorias (Gl 4) e até hipérboles (Cl 1.23),
ao passo que Tiago gostava de usar metáforas e símiles.
Por fim, a Bíblia usa a linguagem simples do senso comum, do dia-adia,
que salienta a ocorrência de um acontecimento, não a linguagem de
fundamento científico. Isso não significa que os autores usassem
linguagem anticientífica ou negadora da ciência, e sim linguagem popular
para descrever fenômenos científicos. Não é mais anticientífico afirmar
que o sol permaneceu parado (Js 10.12) do que dizer que o sol nasceu ou
subiu (Js 1.15). Dizer que a rainha de Sabá veio "dos confins da terra" ou
que as pessoas no Pentecostes vieram "de todas as nações debaixo do céu"
não é dizer coisas com exatidão científica. Os autores usaram formas
comuns, gramaticais de expressar seu pensamento sobre os assuntos.
Por isso, o que quer que fique implícito na doutrina dos escritos
inspirados, os dados das Escrituras mostram com clareza que elas incluem
o emprego de grande variedade de fontes literárias e de estilos de
expressão. Nem todas as mensagens vieram diretamente de Deus, mediante
ditado. Tampouco foram expressas de modo uniforme e literal. É preciso
que se entenda a inspiração da perspectiva histórica e gramatical. A
inspiração não pode ser entendida como um ditado uniforme, ainda que
divino, que exclua os recursos, a personalidade e as variadas formas
humanas de expressão.
Inspiração pressupõe inerrância. A Bíblia não só é inspirada; é
também, por causa de sua inspiração, inerrante, i.e., não contém erro. Tudo
quanto Deus declara é verdade isenta de erro. Com efeito, as Escrituras
afirmam ser a declaração (aliás, as próprias palavras) de Deus. Nada do
que a Bíblia ensina contém erro, visto que a inerrância é conseqüência
lógica da inspiração divina. Deus não pode mentir (Hb 6.18); sua Palavra é
a verdade (Jo 17.17). Por isso, seja qual for o assunto sobre o qual a Bíblia
diga alguma coisa, ela só dirá a verdade. Não existem erros históricos nem
científicos nos ensinos das Escrituras. Tudo quanto a Bíblia ensina vem de
Deus e, por isso, não tem a mácula do erro.
Não é possível refugir às implicações da inerrância factual com a
declaração de que a Bíblia nada tem para dizer a respeito de assuntos
factuais ou históricos. Grande parte da Bíblia apresenta-se como história.
Bastam as tediosas genealogias para atestar essa realidade. Alguns dos
maiores ensinos da Bíblia, como a criação, o nascimento virginal de Cristo,
a crucificação e a ressurreição corpórea, claramente pressupõem matérias
factuais. Não existem meios de "espiritualizar" a natureza factual e
histórica dessas verdades bíblicas, sem praticar violência terrível contra a
análise honesta do texto, da perspectiva cultural e gramatical.
A Bíblia não é um compêndio de Ciências, mas, quando trata de
assuntos científicos em seu ensino, o faz sem cometer erro. A Bíblia não é
um compêndio de História, mas, sempre que a história secular se cruza
com a história sagrada em suas páginas, a Bíblia faz referência a ela sem
cometer erro. Se a Bíblia não fosse inerrante e não estivesse certa nas
questões factuais, empíricas, comprováveis, de que maneira seria possível
confiar nela em questões espirituais, não sujeitas a testes? Como disse
Jesus a Nicodemos: "Se vos falei de coisas terrestres, e não crestes, como
crereis, se vos falar das celestiais?" (Jo 3.12).
3. A inspiração do Antigo Testamento
Será que a Bíblia realmente se diz inspirada ou seria essa idéia mera
reivindicação feita pelos crentes a respeito deste livro? Falando mais
especificamente, será que cada parte ou cada livro da Bíblia se diz
inspirado? Nos próximos dois capítulos estaremos tentando responder a
essas perguntas. Primeiramente, examinemos a reivindicação do Antigo
Testamento a favor de sua inspiração.
A reivindicação do Antigo Testamento a favor de sua inspiração
O Antigo Testamento vindica para si a inspiração divina, com base
no fato de se apresentar perante o povo de Deus e ser por esse povo
recebido como pronunciamento profético. Os livros escritos pelos profetas
de Deus eram conservados em lugar sagrado. Moisés colocara sua lei na
arca de Deus (Dt 10.2). Mais tarde, ela seria mantida no tabernáculo, para
ensino das gerações futuras (Dt 6.2). Cada profeta, depois de Moisés,
acrescentou seus escritos sagrados à coleção existente. Aliás, o segredo da
inspiração do Antigo Testamento está na função profética de seus
escritores.
O Antigo Testamento na qualidade de texto profético
O profeta era o porta-voz de Deus. As funções do profeta ficam
esclarecidas nas várias menções que a ele se fazem. O profeta era chamado
homem de Deus (1Rs 12.22), o que revela ser ele escolhido por Deus; era
chamado servo do Senhor (1Rs 14.18), o que mostra sua ocupação;
mensageiro do Senhor (Is 42.19), o que assinala sua missão a serviço de
Deus; vidente (Is 30.10), o que revela a fonte apocalíptica de sua verdade;
homem do Espírito (Os 9.7), o que demonstra quem o levava a falar;
atalaia (Ez 3.17), o que manifesta sua prontidão em realizar a obra de
Deus. Acima de todas as designações, entretanto, sobressai a de "profeta",
ou seja, o porta-voz de Deus.
Em razão do próprio chamado, o profeta era alguém que se sentia
como Amos — "Falou o Senhor Deus, quem não profetizará?" (Am 3.8)—
ou como outro profeta, que disse: "... eu não poderia desobedecer à ordem
do Senhor meu Deus, para fazer coisa pequena ou grande" (Nm 22.18).
Assim como Arão havia sido profeta ou porta-voz de Moisés (Êx 7.1), pois
deveria falar "todas as palavras que o Senhor havia dito a Moisés" (Êx
4.30), assim também os profetas de Deus deveriam falar somente aquilo
que o Senhor lhes ordenasse. Assim dissera Deus aos profetas: "Porei as
minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar"
(Dt 18.18). Além disso: "Nada acrescentareis ao que vos ordeno, e nada
diminuireis" (Dt 4.2). Em suma, profeta era aquele que dava a saber o que
Deus lhe havia revelado.
Os falsos profetas eram identificados graças às suas profecias falsas e
pela falta de confirmação miraculosa. Assim declara o livro de
Deuteronômio: "Quando o tal profeta falar em nome do Senhor, e o que
disse não acontecer nem se realizar, essa palavra não procede do Senhor"
(Dt 18.22). Sempre que se punha em dúvida um profeta ou se exigia sua
confirmação, Deus deixava claro, por meio de milagres, a quem havia
chamado. A terra se fendeu e tragou a Core e aos demais que contestaram a
vocação de Moisés (Nm 26.10). Elias foi exaltado sobre os profetas de
Baal, quando estes pereceram no fogo caído do céu (1Rs 18.38). Até
mesmo os magos do Egito reconheceram os milagres divinos realizados
por meio de Moisés, quando disseram: "... Isto é o dedo de Deus..." (Êx
8.19).
Sempre ficou bem claro na função do profeta de Deus que o que
dizia era palavra da parte de Deus. Veremos, pois, que as passagens do
Antigo Testamento eram consideradas declarações proféticas. Há várias
maneiras de comprovarmos tal enunciado.
As declarações proféticas eram escritas. Muitas declarações
proféticas eram transmitidas oralmente, mas interessa-nos aqui o fato de
que muitas delas eram registradas, sendo esses registros considerados
declarações do próprio Deus. Não há a menor dúvida de que as palavras
escritas de Moisés fossem consideradas dotadas de autoridade divina. "Não
se aparte da tua boca o livro desta lei" (Js l.8) foi a exortação aos filhos de
Israel.
Josué, sucessor de Moisés, também "escreveu estas palavras no livro
da lei de Deus" (Js 24.26). Quando o rei queimou a primeira mensagem
escrita que Jeremias lhe enviara, o Senhor ordenou ao seu profeta: "Toma
ainda outro rolo, e escreve nele todas as palavras que estavam no primeiro
rolo" (Jr 36.28). O profeta Isaías recebeu esta ordem: "Toma um grande
rolo, e escreve nele" (Is 8.1). De modo semelhante, Habacuque recebeu
esta ordem da parte de Deus: "Escreve a visão, e torna-a bem legível sobre
tábuas, para que aquele que a ler, corra com ela" (Hc 2:2).
Os profetas posteriores usavam os escritos dos profetas que os
antecederam considerando-os Palavra de Deus escrita. Daniel ficou
sabendo que o exílio babilônico de seu povo estava chegando ao fim ao ler
a profecia de Jeremias. Assim escreveu o profeta Daniel: "Eu, Daniel,
entendi pelos livros que o número de anos, de que falou o Senhor ao
profeta Jeremias..." (Dn 9.2).
Os escritores do Antigo Testamento eram profetas. Todos os autores
tradicionais do Antigo Testamento são denominados profetas, seja como
título, seja como função. Nem todos eram profetas por ter estudado para
isso, mas todos possuíam o dom da profecia. Assim confessou Amos: "...
Eu não era profeta, nem filho de profeta [...]. Mas o Senhor [...] me disse:
Vai, profetiza ao meu povo Israel" (Am 7.14,15). Davi, a quem se atribui a
criação de quase metade dos salmos, exercia a função de rei. No entanto,
assim testificou esse rei: "O Espírito do Senhor fala por mim, e a sua
palavra está na minha boca" (2Sm 23.2). O Novo Testamento
acertadamente o denomina profeta (At 2.30). De modo semelhante, o rei
Salomão, autor dos livros de Cântico dos Cânticos, Provérbios e
Eclesiastes, teve visões da parte do Senhor (1Rs 11.9). De acordo com
Números 12.6, as visões eram um meio de Deus mostrar ao povo quem
eram seus profetas. Embora Daniel fosse estadista, o próprio Senhor Jesus
o denominou profeta (Mt 24.15).
Moisés, o grande legislador e libertador de Israel, é denominado
profeta (Dt 18.15; Os 12.13). Josué, sucessor de Moisés, era considerado
profeta de Deus (Dt 34:9). Samuel, Nata e Gade foram profetas que
escreveram (1Cr 29.29), da mesma forma que Isaías, Jeremias, Ezequiel e
os doze profetas menores.
Manteve-se um registro oficial dos escritos proféticos.
Comprovadamente não há registros de escritos não-proféticos conservados
a par da compilação sagrada, que teve início com a lei de Moisés. Parece
que houve continuidade de profetas, e cada um acrescentava seu próprio
livro aos escritos proféticos anteriores. Moisés guardou seus livros ao lado
da arca.
A respeito de Josué está escrito que acrescentou seu livro à
compilação existente (Js 24.26). Seguindo-lhe os passos, Samuel
acrescentou suas palavras à compilação profética, pois a seu respeito está
escrito: "E escreveu-O num livro, e o pôs perante o Senhor" (1Sm 10.25).
Samuel fundou uma escola de profetas (1Sm 19.20), cujos alunos
mais tarde se chamariam "filhos dos profetas" (2Rs 2.3). Existem inúmeros
testemunhos nos livros dás Crônicas segundo os quais os profetas
guardavam com cuidado as histórias. A história de Davi havia sido escrita
pelos profetas Samuel, Nata e Gade (1Cr 29.29). A história de Salomão foi
registrada por Natã, Aías e Ido (2Cr 9.29). O mesmo aconteceu no caso das
histórias de Roboão, de Josafá, de Ezequias, de Manasses e de outros reis
(v. 2Cr 9.29; 12.15; 13.22; 20.34; 33.19; 35.27).
Na época do exílio babilônico, no século VI a.C, Daniel se referiu à
compilação de escritos proféticos dando-lhe o nome de "livros" (Dn 9.2).
De acordo com Ezequiel (13.9), havia um registro oficial dos verdadeiros
profetas de Deus. Todo aquele que transmitisse profecias falsas era
excluído do rol oficial. Só os verdadeiros profetas de Deus eram
oficialmente reconhecidos, e só os escritos desses profetas eram guardados
ao lado dos escritos inspirados. Desde os tempos mais remotos de que
temos registro, todos os 39 livros do Antigo Testamento já compunham
esse acervo de escritos proféticos. Voltaremos a esse assunto
posteriormente (v. caps. 7 e 8).
Reivindicações específicas do Antigo Testamento a favor de sua inspiração
A inspiração do Antigo Testamento não se baseia meramente numa
análise genérica dessa parte da Bíblia como escrito profético. Há
numerosas reivindicações, nas páginas de cada livro, especificamente sobre
sua origem divina. Examinemos tais reivindicações de acordo com a
divisão aceita atualmente dos livros do Antigo Testamento em lei, profetas
e escritos.
A inspiração da lei de Moisés. De acordo com Êxodo 20.1: "Então
falou Deus todas estas palavras...". Essa afirmativa de que Deus falou algo
a Moisés se repete dezenas de vezes em Levítico (e.g., 1.1; 8.9; 11.1). O
livro de Números registra incontáveis vezes:"... o Senhor falou a Moisés..."
(e.g., 1.1; 2.1; 4.1). Deuteronômio acrescenta:"... falou Moisés aos filhos
de Israel, conforme tudo o que o Senhor lhe ordenara a respeito deles..."
(1.3).
O resto do Antigo Testamento declara em uníssono que os livros de
Moisés foram outorgados pelo próprio Deus. Josué impôs imediatamente
os livros da lei ao povo de Israel (1.8). Juízes refere-se aos escritos de
Moisés como "mandamentos do Senhor" (3.4). Samuel reconheceu que
Deus havia nomeado a Moisés líder do povo (1Sm 12.6,8). Nas Crônicas,
os registros mosaicos são tidos por "livro da lei do Senhor, dada por
intermédio de Moisés" (2Cr 34:14). Daniel diz que a maldição escrita na
lei de Moisés é "o juramento que está escrito na lei de Moisés, servo de
Deus [...]. Ele confirmou a sua palavra, que falou contra nós..." (Dn
9.11,12). Até mesmo em Esdras e em Neemias existe o reconhecimento da
lei de Deus dada a Moisés (Ed 6.18; Ne 13.1). O consenso unânime do
Antigo Testamento é que os livros de Moisés foram outorgados pelo
próprio Deus.
A inspiração dos profetas. Segundo a atual divisão do Antigo
Testamento, feita pelos judeus, os livros dos profetas abrangem os antigos
profetas (Josué, Juizes, Samuel e Reis) e os profetas posteriores (Isaías,
Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores). Também esses vindicam
autoridade divina. "Josué escreveu estas palavras no livro da lei de Deus"
(Js 24.26). Deus falou aos homens em Juizes (1.1,2; 6.25) e em Samuel
(3.11), que falou e escreveu a todo Israel (4.1, cf. 1Cr 29.29). Os profetas
posteriores trazem inúmeras vindicações de inspiração divina. A célebre
expressão "assim diz o Senhor", com que encetam suas mensagens, ocorre
centenas de vezes. De Isaías até Malaquias, o leitor é literalmente
bombardeado por expressões revelador as da autoridade divina.
Sob o aspecto cronológico, o Antigo Testamento se encerra nessa
seção, conhecida por profetas, não havendo testemunhos posteriores no
Antigo Testamento sobre a inspiração dessa parte da Bíblia. No entanto, há
referências dentro dos profetas a outros autores proféticos que escreveram
seus livros em época anterior. Daniel considerou o livro de Jeremias
inspirado (Dn 9.2). Esdras reconheceu a autoridade divina de Jeremias (Ed
1.1), bem como a de Ageu e a de Zacarias (Ed 5.1). Numa passagem de
grande importância, Zacarias refere-se à inspiração divina de Moisés e dos
profetas que o precederam, dizendo que seus escritos eram "palavras que o
Senhor dos exércitos enviara pelo seu Espírito mediante os profetas que
nos precederam" (7.12). Esses versículos eliminam toda dúvida quanto ao
fato de os livros que estão na seção das Escrituras judaicas conhecida como
profetas apresentarem ou não a vindicação de inspiração divina.
A inspiração dos escritos. É provável que o Antigo Testamento
originariamente tivesse apenas duas divisões básicas: a lei e os profetas (v.
Cap. 7). Esta última seção seria dividida posteriormente em profetas e
escritos. Talvez essa divisão ocorresse com base na posição oficial do
autor:
era ele profeta por ocupação ou simplesmente pelo dom divino? Os
que fossem profetas pelo dom se enquadrariam na categoria de escritos.
Salmos, o primeiro livro dessa coleção, fora escrito em grande parte por
Davi, que dizia que seus salmos lhe haviam sido ditados — letra por
letra— pelo Espírito (2Sm 23.2). Cântico dos Cânticos, Provérbios e
Eclesiastes tradicionalmente são atribuídos a Salomão; seriam o registro da
sabedoria que lhe fora concedida por Deus (v. 1Rs 3.9,10). Provérbios
contém vindicações específicas de autoridade divina. Eclesiastes (12.13) e
Jó (cap. 38) encerram-se com uma declaração de serem ensino autorizado.
O livro de Daniel baseia-se numa série de visões e sonhos oriundos da
parte de Deus (Dn 2.19; 8.1 etc).
Vários livros deixam de apresentar vindicação de inspiração divina:
Rute, Ester, Cântico dos Cânticos, Lamentações, Esdras-Neemias e
Crônicas. Se o livro de Rute foi escrito por Samuel, como parte de Juizes,
fica sob a vindicação genérica de escrito profético. De semelhante modo,
Lamentações, livro escrito por Jeremias, é profético. Já vimos que Cântico
dos Cânticos é obra derivada da sabedoria concedida por Deus a Salomão.
A tradição judaica atribui Crônicas, Esdras e Neemias a Esdras, o
sacerdote, e a Neemias, que atuou com autoridade profética na repatriação
de Israel, remindo essa nação do cativeiro babilônico (cf. Esdras 10 e
Neemias 13). Não se menciona quem escreveu o livro de Ester, talvez para
que se preservasse seu anonimato naquele ambiente pagão e hostil. A visão
do livro de Ester é notadamente judaica; esse livro serve de autoridade
escrita para a celebração da festa judaica do Purim. Tal fato significa
vindicação implícita de autoridade divina.
Em suma, então, quase todos os livros do Antigo Testamento
oferecem alguma vindicação de inspiração divina. Às vezes se trata de
autoridade implícita, mas em geral há uma declaração explícita do tipo
"assim diz o Senhor". Do início ao fim, a doutrina da inspiração do Antigo
Testamento está solidamente instalada em numerosos trechos, os quais
sustentam sua origem divina.
Apoio do Novo Testamento à vindicação de inspiração feita pelo Antigo
Testamento
Vemos três formas de abordagem ao examinarmos o ensino do Novo
Testamento a respeito da inspiração do Antigo Testamento. Há as
passagens que se referem à autoridade divina do Antigo Testamento como
um todo, genericamente. Há as referências à inspiração de determinadas
partes ou seções do Antigo Testamento. Finalmente, há citações de livros
específicos do cânon judaico.
Referências do Novo Testamento à inspiração do Antigo Testamento
O Novo Testamento reconhece a inspiração do Antigo Testamento de
muitas maneiras. Às vezes, o Novo Testamento usa expressões como
"Escrituras", "Palavra de Deus", "a lei", "os profetas", "a lei e os profetas"
e "oráculos de Deus".
Escrituras é, de longe, o termo mais comum usado no Novo
Testamento em referência ao Antigo. De acordo com Paulo, "Toda
Escritura [Antigo Testamento] é inspirada por Deus" (2Tm 3.16). Disse
Jesus: "A Escritura não pode ser anulada" (Jo 10.35). Com freqüência o
Novo Testamento emprega o plural, Escrituras, para referir-se à coleção de
escritos judaicos dotados de autoridade divina. Respondeu Jesus aos
fariseus: "Nunca lestes nas Escrituras?" (Mt 21.42) e "Errais, não
conhecendo as Escrituras, nem o poder de Deus" (Mt 22.29). O apóstolo
Paulo "discutiu com eles sobre as Escrituras" (At 17.2), e os crentes de
Beréia examinavam "cada dia nas Escrituras" (At 17.11). Nessas e em
muitas outras referências, o Novo Testamento reconhece que o Antigo
Testamento como um todo são escritos inspirados por Deus.
Palavra de Deus é expressão que aparece menos comumente, mas
talvez seja a alusão mais forte à inspiração divina do Antigo Testamento.
Em Marcos 7.13, Jesus acusou os fariseus de invalidar "a palavra de Deus",
e empregou a expressão como sinônimo de "Escrituras". Há numerosas
referências à "Palavra de Deus", embora nem todas identifiquem com
clareza o Antigo Testamento. Paulo argumentou assim: "Não que a palavra
de Deus haja falhado" (Rm 9.6). Em outra passagem ele se refere à sua
recusa em falsificar a palavra de Deus (2Co 4.2). O autor de Hebreus
declara que "a palavra de Deus é viva e eficaz" (Hb 4.12). A declaração do
apóstolo Pedro — "Dele [i.e., de Cristo] dão testemunho todos os profetas"
(At 10.43) — dificilmente se limitaria a algo que não fosse o Antigo
Testamento como um todo, à vista de Lucas 24.27,44. Os textos que com
máxima clareza identificam todo o Antigo Testamento como Palavra de
Deus não deixam dúvida quanto à realidade de sua inspiração divina.
Lei em geral é palavra que se refere ao Antigo Testamento como
forma abreviada de "lei de Moisés". A lei representa apenas os cinco
primeiros livros das Escrituras judaicas. No entanto, em certos casos, a
palavra lei se aplica a todo o Antigo Testamento. João 10.34 provavelmente
é um desses casos mais significativos. Visto que a citação é extraída de
Salmos 82.6, fica bem claro que não se refere à lei de Moisés. A palavra
"lei" é usada aqui em relação a "Escrituras" e a "Palavra de Deus",
mostrando que a referência se faz a todo o Antigo Testamento. Em João
12.34, as pessoas mencionam "a lei", ainda que em outro texto Jesus faça
referência a "sua [deles] lei" (Jo 15.25), e, em Atos, Paulo a identifique
como "a lei dos judeus" (At 25.8). Paulo introduziu uma citação do Antigo
Testamento com a seguinte frase: "Está escrito na lei" (1Co 14.21). Em seu
famoso sermão do monte, Jesus empregou o termo lei como sinônimo de
"lei e profetas", expressão que, como vemos, refere-se claramente aos
documentos inspirados por Deus, a que se dá o nome de Antigo Testamento
(Mt 5.18).
A lei e os profetas, ou "Moisés e os profetas", é o segundo título mais
comumente atribuído às Escrituras judaicas. É designação que ocorre
dezenas de vezes no Novo Testamento. Jesus a usou duas vezes em seu
famoso sermão (Mt 5.17; 7.12), afirmando ter vindo à terra a fim de
cumprir "a lei e os profetas", os quais jamais haveriam de passar. Lucas
16.16 apresenta "a lei e os profetas" como a revelação divina até a época de
João Batista. Em sua defesa perante Félix, Paulo declarou ser "a lei e os
profetas" todo o conselho de Deus que ele, como judeu devoto, havia
praticado desde sua juventude (At 24.14). Eram "a lei e os profetas" que
eram lidos nas sinagogas (At 13.15), de que a Regra de Ouro, ou o maior
dos mandamentos, é a súmula moral (Mt 7.12).
Os profetas vez por outra se referia a todo o Antigo Testamento. Visto
ser o Antigo Testamento enunciação profética, não é de surpreender que
seja chamado, às vezes, "os profetas". O fato de o Antigo Testamento ser
chamado às vezes "Escrituras dos profetas" mostra que se tem em mente
um grupo de livros (Mt 26.56). Na verdade, o título "profetas" é usado em
paralelo com a expressão "a lei e os profetas" (Lc 24.25,27), referindo-se
claramente a todo o Antigo Testamento.
Oráculos de Deus sem dúvida é expressão que tenciona comunicar
essa idéia. Aparece duas vezes e refere-se às Escrituras do Antigo
Testamento. Disse Paulo a respeito dos judeus: "As palavras de Deus lhe
foram confiadas", isto é, aos judeus (Rm 3.2). Noutra passagem, declara-se
a necessidade de alguém "ensinar os princípios elementares dos oráculos
de Deus" (Hb 5.12). Portanto, a palavra escrita do Antigo Testamento é a
Palavra de Deus.
Está escrito é expressão que se encontra mais de noventa vezes no
Novo Testamento. A maior parte das ocorrências dessa expressão introduz
citações específicas, mas algumas têm aplicação genérica ao Antigo
Testamento como um todo. Eis alguns exemplos desta última aplicação:
"Por que, pois, está escrito que o Filho do homem deve sofrer muito e ser
rejeitado?" (Mc 9.12; cf. 14.21). Temos aqui um resumo do ensino
genérico sobre a morte de Cristo no Antigo Testamento, em vez de uma
citação veterotestamentária específica. Lucas 18.31 é uma referência mais
definitiva ainda: "E se cumprirá no Filho do homem tudo o que os profetas
escreveram". Há outros textos ainda, como "Pois dias de vingança são
estes, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas" (Lc 21.22),
que dão apoio à tese segundo a qual os escritos do Antigo Testamento
como um todo eram considerados inspirados por Deus. Prediziam tudo a
respeito de Cristo e era inevitável que se cumprissem.
Para que se cumprissem as Escrituras é expressão encontrada com
muita freqüência no Novo Testamento em referência ao Antigo Testamento
como um todo. Jesus disse "que era necessário que se cumprisse tudo o que
de mim estava escrito" na Lei, nos Profetas e nos Salmos (Lc 24.44). Em
outra ocasião, disse o Senhor: "Não penseis que vim destruir a lei ou os
profetas; não vim para destruí-los, mas para cumpri-los" (Mt 5.17). Essa
fórmula mais de trinta vezes introduz uma citação específica do Antigo
Testamento ou uma referência a essa parte da Bíblia. Sempre se referem à
natureza profética das Escrituras, outorgadas que foram por Deus, e,
necessariamente, devem ser cumpridas.
Referências do Novo Testamento a seções específicas do Antigo
Testamento
O segundo indício no Novo Testamento de que o Antigo Testamento
era considerado inspirado por Deus são as referências à autoridade de
certos trechos das Escrituras hebraicas (e.g., a lei, os profetas e os escritos).
A lei e os profetas, como mostramos acima, referem-se a uma divisão
do Antigo Testamento em duas partes. Essa referência ocorre dezenas de
vezes no Novo Testamento. Indica todos os escritos inspirados, desde
Moisés até Jesus (Lc 16.16), considerados Palavra eterna de Deus (Mt
5.18). Além das referências às duas partes em conjunto, há outras que
tratam da lei e dos profetas de modo separado.
A lei em geral designa os primeiros cinco livros do Antigo
Testamento, como ocorre em Mateus 12.5. Às vezes a expressão é "a lei de
Moisés" (At 13.39; Hb 12,5). Em outras passagens esses livros são
chamados simplesmente, “Moisés” (2Cor 3.15), "os livros de Moisés'' (Mc
12.26) ou "os livros da lei" (Gl 3.10). Em cada caso recorre-se à autoridade
divina do ensino mosaico. O Pentateuco como um todo era considerado
proveniente de Deus.
Os profetas em geral identifica a segunda metade do Antigo
Testamento (v. Jo 1.45; Lc 18.31). Empregam-se também as expressões "as
escrituras dos profetas" (Mt 26.56) e "o livro dos profetas" (At 7.42). Nem
sempre fica claro que esses títulos se referem apenas aos livros escritos
após o ministério de Moisés, embora às vezes isso esteja muito bem
especificado, como revela a separação dos dois títulos. No que concerne ao
título profetas, exatamente o fato de significar porta-vozes de Deus revela a
inspiração divina dos livros que levam essa designação (2Pe 1.20,21).
Os escritos não é termo neotestamentário. Trata-se de designação
não-bíblica usada para dividir os escritos proféticos em duas partes: a
escrita por profetas profissionais ("os profetas") e a escrita por outros tipos
de profetas ("os escritos"). Existe apenas uma alusão no Novo Testamento
a uma possível divisão do Antigo Testamento em três partes. Jesus referiuse
a "tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, nos Profetas e nos
Salmos" (Lc 24.44). Não ficou claro aqui se o Senhor estava destacando os
Salmos, em vista de seu significado messiânico especial, como parte da
"lei" e dos "profetas", a que ele se referiu anteriormente no mesmo capítulo
(v. 27), ou o primeiro livro da seção conhecida agora como "escritos". Seja
qual for o caso, a natureza messiânica e profética dessa suposta terceira
parte do Antigo Testamento faz que ela se destaque como inspirada por
Deus. E, se houver apenas duas seções no cânon do Antigo Testamento
(como veremos no cap. 7), o resto das Escrituras inspiradas já foi estudado
quando tratamos do designativo "profetas".
Referências do Novo Testamento a livros específicos do Antigo Testamento
Dos 22 livros do cânon judaico mencionados por Josefo (Contra
Ápion, i, 8), cerca de 18 são citados no Novo Testamento como
autorizados. Não se encontram menções a Juizes, a Crônicas, a Ester e ao
Cântico dos Cânticos, ainda que haja referências a acontecimentos de
Juizes (Hb 11.32) e de Crônicas (Mt 23.35; 2Cr 24.20). Pode haver uma
alusão a Cântico dos Cânticos 4.15 na referência que Jesus faz a "águas
vivas" (Jo 4.10), mas tal citação não seria apoio à autoridade do livro. De
maneira semelhante, a provável referência à Festa do Purim, de Ester 9, em
João 5.1, ou a similaridade entre Apocalipse 11.10 e Ester 9.22 não
poderiam ser consideradas apoio à inspiração de Ester. A autoridade divina
investida sobre o livro de Ester é satisfatoriamente atestada de outra forma
(v. cap. 8), não, todavia, mediante citações do Novo Testamento.
Quase todos os 18 livros restantes do cânon hebraico são citados com
autoridade no Novo Testamento. A criação do homem em Gênesis (1.27) é
citada por Jesus em Mateus 19.4,5. O quinto mandamento de Êxodo 20.12
é citado como Escritura em Efésios 6.1. A lei da purificação dos leprosos,
registrada em Levítico 14.2-32, é citada em Mateus 8.4. Números é
mencionado indiretamente, pois em 1Coríntios há referência a
acontecimentos registrados naquele livro, referência essa para admoestação
dos cristãos (1Co 10.11). Números 12.7 registra a fidelidade de Moisés,
sendo essa passagem mencionada com autoridade em Hebreus 3.5.
Deuteronômio é um dos livros mais citados do Antigo Testamento. Jesus o
menciona duas vezes em sua tentação (Mt 4.4 e 4.7; cf. Dt 8.3 e 6.16).
Josué recebeu a promessa da parte de Deus: "... não te deixarei, nem
te desampararei" (1.5), a qual é citada em Hebreus 13.5. Jesus citou o
incidente de 1Samuel 21.1-6, em que Davi comeu os pães da proposição,
em apoio à autoridade do Senhor de exercer certas atividades no dia de
sábado. A resposta de Deus a Elias, em 1Reis 19.18 é citada em Romanos
11.4. Esdras-Neemias provavelmente são citados em João 6.31 (cf. Ne
9.15), ainda que a provisão de "pão do céu" a Israel por parte de Deus
também seja citada em outras passagens (Sl 78.24; 105.40).
A autoridade divina do livro de Jó (5.12) é demonstrada de modo
claro por Paulo: "Gomo está escrito: Ele apanha os sábios na sua própria
astúcia" (1Co 3.19). O livro de Salmos é outro do Antigo Testamento que
se menciona com muita freqüência. Era um dos favoritos de Jesus.
Compare Mateus 21.42 — " A pedra que os edificadores rejeitaram, essa se
tornou a pedra angular" — com Salmos 118.22. Pedro citou o salmo 2 em
seu sermão do Dia de Pentecostes (At 2.34,35). Hebreus apresenta
abundância de referências aos Salmos; o primeiro capítulo cita os salmos
2,104,45 e 102. Provérbios 3.34 — "Ele escarnece dos escarnecedores, mas
dá graça aos humildes" — é citado com toda clareza em Tiago 4.6. Não
existe citação literal de Eclesiastes, mas algumas passagens contêm
doutrinas aparentemente confiáveis. A declaração de Paulo "Tudo o que o
homem semear, isso também ceifará" (Gl 6.7) é parecida com a de
Eclesiastes 11.1. O desafio para que se evite a luxúria da juventude (2Tm
2.22) reflete Eclesiastes 11.10. Outros exemplos são os seguintes: a morte é
determinada por Deus (Hb 9.27; cf. Ec 3.2); o amor ao dinheiro é a fonte
do mal (1Tm 6.10; cf. Ec 5.10); não devemos multiplicar palavras vãs em
nossas orações (Mt 6.7; cf. Ec 5.2).
Isaías é outro autor do Antigo Testamento muito citado no Novo.
João Batista, em Mateus 3.3, apresentou Jesus com a citação de Isaías 40,3.
Na sinagoga de sua cidade natal, Jesus leu Isaías 61.1,2: "O Espírito do
Senhor está sobre mim" (cf. Lc 4.18,19). Paulo citava Isaías com
freqüência (cf. Rm 9.27; At 28.25-28). Jeremias 31.15 é citado em Mateus
2.17,18, e a nova aliança de Jeremias (cap. 31) é citada duas vezes em
Hebreus 8.8 e 10.16. Lamentações, apenso a Jeremias na relação dos 22
livros da Bíblia hebraica, é mencionado em Mateus 27.30 (cf. Lm 3.30).
Ezequiel é citado em diversas ocasiões no Novo Testamento, ainda que
nenhuma citação seja literal. O ensino de Jesus a respeito do novo
nascimento (Jo 3.5) pode ter-se originado em Ezequiel 36.25,26. Romanos
6.23 declara: "o salário do pecado é a morte", o que reflete Ezequiel 18.20:
"A alma que pecar, essa morrerá". O uso que João faz das quatro criaturas
viventes (Ap 4.7) reflete com clareza Ezequiel 1.10. Daniel é identificado
pelo nome no sermão do monte, pregado por Jesus (Mt 24.15; cf. Dn 9.27;
11.31), e Mateus 21.30 reflete Daniel 7.13. Os doze profetas menores
foram agrupados no Antigo Testamento hebraico. Há muitas citações desse
grupo de escritos. A famosa expressão de Habacuque "O justo pela sua fé
viverá" (Hc 2.4) é mencionada em três ocasiões no Novo Testamento (Rm
1.17; Gl 3.11; Hb 10.38). Mateus 2.15 cita Oséias 11.1: "Do Egito chamei
a meu filho".
Diante disso, verificamos que só Juízes-Rute, Crônicas, Ester e
Cântico dos Cânticos deixam de ser mencionados com clareza no Novo
Testamento. No entanto, Juizes apresenta acontecimentos históricos a que a
Novo Testamento faz alusão como autênticos (Hb 11.32). E talvez Jesus
tinha Crônicas em mente ao fazer referência ao sangue de Zacarias (Mt
23.35). Isso faz que apenas Ester e Cântico dos Cânticos fiquem sem uma
referência explícita no Novo Testamento; e isso ocorreu, sem dúvida,
porque os autores do Novo Testamento não tiveram oportunidade de
mencionar tais livros. Ester é o livro básico da Festa do Purim, e Cântico
dos Cânticos era lido na grande Festa da Páscoa, que reflete a estima que a
comunidade judaica lhe votava.
O Novo Testamento dá apoio à vindicação de inspiração divina do
Antigo Testamento como um todo, de todas as suas partes e de quase cada
um de seus livros. Além disso, há referências diretas e repletas de
autoridade a muitas das grandes personalidades e dos grandes
acontecimentos do Antigo Testamento, dentre os quais a criação de Adão e
de Eva (Mt 19.4), o dilúvio do tempo de Noé (Lc 17.27), o chamado
miraculoso de Moisés (Lc 20.37), a miraculosa provisão material para
Israel no deserto (Jo 3.14; 6.49), os milagres de Elias (Lc 4.24,25) e Jonas
no ventre do grande peixe (Mt 12.41).
Confirmação ou conciliação?
A despeito do grande número de citações do Antigo Testamento e de
sua autoridade, houve quem cresse que nem Jesus, nem os apóstolos
confirmaram, de fato, a inspiração e a confiabilidade dessa parte da Bíblia.
Em vez disso, afirmam tais estudiosos, os autores do Novo Testamento
estariam conciliando seus textos às crenças judaicas aceitas na época.
Trata-se de hipótese refinada, mas sem substância. É teoria que não se
coaduna com os fatos das Escrituras, nem com as vindicações de Cristo. As
referências mais numerosas e significativas quanto à genuinidade e à
inspiração divina do Antigo Testamento vêm dos lábios do próprio Jesus,
que jamais demonstrou tendência para a conciliação. A expulsão dos
cambistas de dinheiro de dentro templo (Jo 2.15), a denúncia dos "guias
cegos" (Mt 23.16) e dos "falsos profetas" (Mt 7.15) e a advertência aos
mestres em evidência (Jo 3.10) dificilmente seriam tidas como sinais de
conciliação.
Aliás, Jesus repreendia sem rodeios as pessoas que se aferravam às
tradições e não à Palavra de Deus (cf. Mt 15.1-6). Seis vezes num único
capítulo (Mt 5), Jesus contrapôs a verdade a respeito das Escrituras às
falsas crenças que haviam surgido e se expandiam. O Senhor as denunciou
assim: "Ouvistes que foi dito" (e não "está escrito") e "eu, porém, vos
digo". Jesus não hesitava em declarar "Errais" (Mt 22.29), quando os
homens estavam errados. Mas, quando os homens entendiam a verdade, o
Senhor os estimulava, dizendo-lhes: "Respondeste bem" (Lc 10.28). O
ensino de Jesus a respeito da autoridade divina do Antigo Testamento é tão
incondicional e tão isento de transigências, que não se pode rejeitar esse
ensino sem rejeitar as palavras de Jesus. Se alguém não aceitar a autoridade
do Antigo Testamento como Escritura Sagrada, tal pessoa põe em dúvida a
integridade do Salvador. Seja o que for que se diga a respeito da inspiração
do Antigo Testamento, uma coisa é certa: o próprio Antigo Testamento
reivindica a própria inspiração. E o Novo Testamento a confirma de modo
maravilhoso.
4. A inspiração do Novo Testamento
Os apóstolos e profetas do Novo Testamento não hesitaram em
classificar seus escritos como inspirados, ao lado do Antigo Testamento.
Seus livros eram respeitados, colecionados e circula na igreja primitiva
como Escrituras Sagradas. O que Jesus declarou ir inspiração a respeito do
Antigo Testamento o Senhor prometeu também quanto ao Novo
Testamento. Vamos examinar a promessa de inspiração e seu cumprimento
nas páginas do Novo Testamento.
O Novo Testamento reivindica inspiração divina
Há dois movimentos básicos na compreensão das reivindicações do
Novo Testamento a respeito de sua inspiração. Primeiramente temos a
promessa de Cristo de que o Espírito Santo guiaria os discípulos no ensino
de suas verdades, que constituem o fundamento da igreja. Em segundo
lugar, há o cumprimento aclamado disso no ensino apostólico e nos
escritos do Novo Testamento.
A promessa de Cristo a respeito da inspiração
Jesus nunca escreveu um livro. No entanto, endossou a autoridade do
Antigo Testamento (v. cap. 3) e a promessa de inspiração para o Novo
Testamento. Em várias ocasiões, o Senhor prometeu a concessão de
autoridade divina para o testemunho apostólico dele mesmo.
A comissão dos Doze. Quando o Senhor enviou seus discípulos para
pregarem o reino dos céus (Mt 10.7), ele lhes prometeu a direção do
Espírito Santo. "Naquela mesma hora vos será concedido o que haveis de
dizer, pois não sois vós que falareis, mas o Espírito de vosso Pai é quem
fala em vós" (Mt 10.19,20; cf. Lc 12.11,12).A proclamação que os
apóstolos fizessem de Cristo teria origem no Espírito de Deus.
O envio dos setenta. A promessa da unção divina não se limitava aos
Doze. Quando Jesus enviou os setenta, para que pregassem "o reino de
Deus" (Lc 10.9), ordenou-lhes: "Quem vos ouve, a mim me ouve; quem
vos rejeita, a mim me rejeita..." (Lc 10.16). Eles voltaram reconhecendo a
autoridade de Deus até mesmo sobre Satanás em seu ministério (Lc 10.17-
19).
O sermão do monte das Oliveiras. Em seu sermão no monte das
Oliveiras, Jesus reafirmou sua promessa antiga aos discípulos: "... não vos
preocupeis com o que haveis de dizer. O que vos for dado naquela hora,
isso falai, pois não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo" (Mc
13.11). As palavras que pronunciassem viriam de Deus, mediante o
Espírito; não viriam deles mesmos.
Os ensinos durante a última ceia. A promessa da orientação do
Espírito Santo ficaria mais claramente definida por ocasião da última ceia.
Jesus lhes prometeu: "Mas o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai
enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de
tudo o que vos tenho dito" (Jo 14.26). Eis por que Jesus não escreveu seus
ensinos. O Espírito daria nova vida à memória dos discípulos que os
aprenderam; seriam orientados pelo Espírito em tudo quanto o Senhor lhes
havia ensinado. De fato, disse Jesus: "Quando vier o Espírito da verdade,
ele vos guiará em toda a verdade" (Jo 16.13). "Toda a verdade" ou "todas
as coisas" que Cristo ensinara seriam relembradas aos discípulos pelo
Espírito. O ensino apostólico seria inspirado pelo Espírito de Deus.
A Grande Comissão. Quando Jesus enviou seus discípulos — "... ide
e fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que eu
vos tenho mandado" (Mt 28.19,20) — , fez-lhes a promessa também de
que teriam toda a autoridade nos céus e na terra para realizar a tarefa. A
palavra dos discípulos seria a Palavra de Deus.
A promessa de Cristo reivindicada pelos discípulos
Os discípulos de Cristo não se esqueceram da promessa do Senhor.
Eles pediram-lhe que seu ensino tivesse exatamente o que Jesus lhes havia
prometido: a autoridade de Deus. E eles o fizeram de várias maneiras:
dedicando-se ao que sabiam ser a continuação do ministério de ensino de
Cristo, crendo fervorosamente que seus ensinos teriam a mesma autoridade
e poder do Antigo Testamento e afirmando de modo específico em seus
escritos que eles tinham a autoridade de Deus.
A afirmação de estarem dando prosseguimento ao ensino de Cristo.
Lucas afirma ter apresentado um relato exato de "tudo o que Jesus
começou não só a fazer, mas também a ensinar" em seu evangelho. Ele dá
a entender que Atos registra o que Jesus continuou a fazer e a ensinar
mediante seus apóstolos (At 1.1; cf. Lc 1.3,4). Na realidade, segundo
consta, a primeira igreja se caracterizava pela devoção ao "ensino dos
apóstolos" (At 2.42). Até mesmo os ensinos de Paulo, que se baseavam nas
revelações diretas de Deus (Gl 1.11,12), estavam sujeitos à aprovação dos
apóstolos (At 15). A própria igreja do Novo Testamento, como se sabe, foi
edificada "sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas [do Novo
Testamento]" (Ef 2.20; cf. 3.5).
É verdade que as declarações orais dos apóstolos que viviam na
época tinham a mesma autoridade de seus escritos (1Ts 2.15), e também e
verdade que os livros do Novo Testamento são o único registro autêntico
do ensino apostólico de que dispomos hoje. A restrição de que todo
membro dos doze apóstolos deve ser testemunha ocular do ministério e da
ressurreição de Jesus Cristo (At 1.21,22) elimina a sucessão apostólica que
não passaria do século I. E o fato de não existir ensino apostólico autêntico
além do encontrado no Novo Testamento limita tudo quanto os apóstolos
ensinaram ao que se encontra no Novo Testamento, i.e., aos seus 27 livros.
Ao lado do Antigo Testamento, esses livros são considerados inspirados,
dotados de autoridade divina, visto que só eles são verdadeiramente
apostólicos ou proféticos (v. cap. 10).
Em suma, Cristo prometeu que todo o ensino apostólico seria
dirigido pelo Espírito. Os livros do Novo Testamento são o único registro
autêntico que temos do ensino apostólico. Daí decorre que só o Novo
Testamento pode reivindicar para si o título de registro autorizado dos
ensinos de Cristo.
Comparação entre o Novo e o Antigo Testamento. A promessa de
Cristo de que inspiraria os ensinos dos apóstolos e o cumprimento de tal
promessa nos escritos do Novo Testamento não são os únicos indícios de
sua inspiração. Outro indício é sua comparação direta com o Antigo
Testamento. Paulo reconhecia claramente a inspiração do Antigo
Testamento (2Tm 3,16), ao chamá-lo "Escrituras". Pedro classificou as
cartas de Paulo ao lado das demais "Escrituras" (2Pe 3.16). E Paulo
menciona o evangelho de Lucas, chamando-o "Escritura" (1Tm 5.18,
citando Lc 10.7). Na verdade, em outra passagem o apóstolo atribui a seus
próprios escritos a mesma autoridade das "Escrituras" (l1m 4.11,13).
O livro de Hebreus declara que o Deus que falou em tempos antigos,
mediante os profetas, nestes últimos dias tem falado da salvação por seu
Filho (Hb 1.2). E prossegue o autor, afirmando: "... tão grande salvação [...]
a qual, começando a ser anunciada pelo Senhor, foi-nos depois confirmada
pelos [apóstolos] que a ouviram" (Hb 2.3). Os apóstolos foram o canal da
verdade de Deus no Novo Testamento, assim como os profetas no Antigo.
Portanto, não é de estranhar que os livros apostólicos sejam colocados no
mesmo nível de autoridade dos livros inspirados do Antigo Testamento.
São todos proféticos.
De fato, Pedro escreveu que os escritos proféticos advieram mediante
inspiração divina (2Pe 1.21), e os escritos do Novo Testamento reivindicam
claramente a condição de proféticos. João chama a seu livro profecia e se
classifica entre os profetas (Ap 22.18,19). Os profetas do Novo Testamento
estão na lista, junto com os apóstolos, dos alicerces da igreja (Ef 2.20). É
provável que Paulo também tivesse seus próprios escritos em mente
quando falou a respeito da "revelação do mistério que desde os tempos
eternos esteve oculto, mas que se manifestou agora, e foi dado a conhecer
pelas Escrituras dos profetas, segundo o mandamento do Deus eterno, a
todas as nações para obediência da fé..." (Rm 16.25,26). Paulo afirma em
Efésios 3.3,5 que "o mistério [...] me foi manifestado pela revelação, como
acima em poucas palavras vos escrevi. [...] o qual em outras gerações não
foi manifestado aos filhos dos homens, como agora [nos tempos do Novo
Testamento] foi revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas
[do Novo Testamento]" (cf. Ef 2.20). Assim é que os escritos proféticos do
Novo Testamento revelam o mistério de Cristo predito nos escritos
proféticos do Antigo Testamento. A semelhança do Antigo, o Novo
Testamento é uma declaração profética da parte de Deus.
Reivindicação direta de inspiração nos livros do Novo Testamento.
No próprio texto dos livros do Novo Testamento há numerosos indícios de
sua autoridade divina. São eles explícitos e implícitos. Os evangelhos
apresentam-se como registros autorizados do cumprimento das profecias
do Antigo Testamento a respeito de Cristo (cf. Mt 1.22; 2.15,17; Mc 1.2).
Lucas escreveu a fim de o leitor poder saber a verdade acerca de Cristo,
"fatos que entre nós se cumpriram, segundo nos transmitiram os que desde
o princípio foram deles testemunhas oculares, e ministros da palavra" (Lc
1.1,2), João escreveu seu evangelho para que os homens cressem: " ... para
creiais que Jesus é o Cristo, o filho de Deus, e para que, crendo, tenhais
Vida em seu nome" (Jo 20.31). E o apóstolo acrescenta que seu testemunho
é verdadeiro (Jo 21.24).
O livro chamado Atos dos Apóstolos, também escrito por Lucas,
apresenta-se como registro autorizado do que Jesus continuou a fazer e a
ensinar mediante seus apóstolos (At 1.1). Isso foi visto também como
cumprimento de profecia do Antigo Testamento (cf. At 2 e Jl 2). Visto que
Paulo citou o evangelho de Lucas como "Escritura" (1Tm 5.18), torna-se
evidente que tanto o apóstolo como Lucas consideravam a continuação do
relato evangelístico, i.e., o livro de Atos, texto autorizado e também
inspirado por Deus.
Todas as cartas de Paulo, de Romanos até Filemom, reivindicam
inspiração divina. Em Romanos, Paulo comprova sua vocação divina para
o apostolado (Rm 1.1-3). O apóstolo encerra sua carta com a afirmação de
que se trata de texto profético (Rm 16.26). Paulo no final de 1Coríntios
diz: "As coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor" (1Co 14.37).
Ele inicia 2Coríntios repetindo a afirmação de que é apóstolo genuíno (Co
1.1,2). Nessa carta ele defende seu apostolado de modo mais completo do
que em qualquer outra carta do Novo Testamento (2Co 10-13). Gálatas nos
apresenta a mais forte defesa que Paulo faz de suas credenciais divinas. Ao
falar da revelação feita a ele do evangelho da graça, ele escreveu: "Não o
recebi, nem aprendi de homem algum, mas pela revelação Jesus Cristo"
(Gl 1.12). Em Efésios, o apóstolo declara também: "... o mistério que me
foi manifestado pela revelação, como acima em poucas palavras vos
escrevi..." (Ef 3.3). Em Filipenses, Paulo admoesta os crentes duas vezes a
que sigam o padrão apostólico de vida (Fp 3.17; 4.9). Em Colossenses,
assim como em Efésios, Paulo sustenta que seu ofício de apóstolo lhe foi
dado diretamente por Deus, "para cumprir a palavra de Deus" (Cl 1.25). A
Primeira Carta aos Tessalonicenses encerra-se com esta admoestação:
"Pelo Senhor vos conjuro que esta epístola seja lida a todos os santos
irmãos" (1Ts 5.27). Anteriormente, o apóstolo havia lembrado a esses
irmãos: "... havendo recebido de nós a palavra da pregação Deus, a
recebestes, não como palavra de homens, mas (segundo é, na verdade),
como palavra de Deus..." (1Ts 2.13). A Segunda Carta aos Tessalonicenses
também termina com uma exortação: "... se alguém não obedecer à nossa
palavra por esta carta, notai o tal, e não vos associeis com ele, para que se
envergonhe" (2Ts 3.14). A respeito da mensagem de 1Timóteo, o apóstolo
escreveu: "Manda estas coisas e ensina-as. [...] Persiste em ler, exortar e
ensinar, até que eu vá" (1Tm 4.11,13). Nesse texto, Paulo coloca sua
própria carta no mesmo nível do Antigo Testamento. Sua carta e o Antigo
Testamento deveriam ser lidos nas igrejas, por terem a mesma autoridade
divina (cf. Cl 4.16). A segunda carta a Timóteo contém a passagem clássica
sobre a inspiração divina das Escrituras (2Tm 3.16) e a exortação para que
os crentes sigam o padrão das palavras sadias que receberam de Paulo
(2Tm 1.13). "Conjuro-te, pois, diante de Deus e de Cristo Jesus...",
escreveu o apóstolo, "prega a palavra, insta a tempo e fora de tempo..."
(2Tm 4.1,2). De maneira semelhante, Paulo ordenou a Ti to: "Fala estas
coisas, exorta e repreende com toda a autoridade" (Tt 2.15). Embora o tom
da carta a Filemom seja intercessório, Paulo deixa bem claro que ele
poderia ordenar tudo que ali está pedindo por amor (Fm 8).
Hebreus 2.3,4 deixa bem evidente que este livro — seja quem for o
autor— baseia-se na autoridade de Deus outorgada aos apóstolos e às
testemunhas oculares de Cristo. Os leitores são admoestados a que se
lembrem de seus líderes, aqueles que "vos falaram a palavra de Deus" (Hb
13.7). E a seguir o autor continua a admoestar: "Rogo-vos, porém, irmãos,
que suporteis esta palavra de exortação, pois vos escrevi resumidamente
(Hb 13.22). Tiago, irmão do Senhor Jesus (Gl 1.19) e líder da igreja de
Jerusalém (At 15.13), escreve com autoridade apostólica às doze tribos da
Dispersão (Tg 1.1). A Primeira Carta de Pedro afirma ser proveniente do
"apóstolo de Jesus Cristo" (1Pe 1.1) e contém admoestações tipicamente
apostólicas (1Pe 5.1,12). A Segunda Carta de Pedro originou-se de "Simão
Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo", lembrando aos leitores que o
"mandamento do Senhor e Salvador, dado mediante os vossos apóstolos"
tem a mesma autoridade das predições dos profetas do Antigo Testamento
(2Pe 3.2). A Primeira Carta de João é de alguém que ouviu, viu,
contemplou a Cristo e lhe tocou com as mãos (1Jo 1.1). Nesta carta, o
apóstolo João apresenta o modo de verificar a verdade e o erro (1Jo 4.1,2),
afirma que a comunidade apostólica é proveniente de Deus (1Jo 2.19) e
escreve a fim de confirmar a fé dos verdadeiros crentes (1Jo 5.13). A
Segunda e a Terceira Carta são do mesmo apóstolo, João, tendo, portanto, a
mesma autoridade (cf. 2Jo 5.7; 3Jo 9.12). Judas escreveu um texto sobre "a
salvação que nos é comum", em defesa da fé "que de uma vez por todas foi
entregue aos santos" (Jd 3). A "revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe
deu" (Ap 1.1), descreve a origem do último livro do Novo Testamento.
"Eu, João", escreve o apóstolo,"[...] estava na ilha chamada Patmos por
causa da palavra de Deus [...] no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim uma
grande voz, como de trombeta, que dizia: O que vês, escreve-o num livro, e
envia-o às sete igrejas que estão na Ásia..." (Ap 1.10,11). Nenhum outro
livro da Bíblia traz declaração mais visível de sua inspiração da parte de
Deus do que o Apocalipse. A advertência para que não se profanem suas
palavras tem o apoio de uma ameaça de julgamento divino das mais fortes
nas Escrituras. Trata-se de confirmação muito pertinente à vindicação de
que todo o Novo mento é Palavra inspirada de Deus, em pé de igualdade
com o Antigo Testamento.
Apoio à reivindicação de inspiração do Novo Testamento
Há dois tipos de evidências que demonstram haver total apoio à
reivindicação que o Novo Testamento faz acerca de sua inspiração divina.
Uma delas acha-se dentro do próprio Novo Testamento; a outra inicia-se
com os pais da igreja, que seguiram os apóstolos.
Apoio à reivindicação de inspiração dentro do Novo Testamento
A igreja do século I não agiu com ingenuidade ao aceitar certos
escritos como inspirados. Jesus havia advertido seus discípulos a respeito
de falsos profetas e de enganadores que haveriam de vir em seu nome (Mt
7.15; 24.10,11). Paulo havia exortado os tessalonicenses para que não
aceitassem os ensinos errôneos de cartas que pretensamente teriam vindo
da parte dele (2Ts 2.2). João advertiu seus leitores com grande fervor:
"Amados, não creiais em todo espírito, mas provai se os espíritos vêm de
Deus" (1Jo 4.1). No século I já estavam em circulação ensinos falsos e
incorretos a respeito de Cristo (cf. Lc 1.1-4). Por essa razão, a igreja do
período neotestamentário precisava estar discernindo a mentira da verdade
desde o início. Todo livro sem a firma apostólica (2Ts 3.17) deveria ser
recusado. O fato de os livros serem lidos, citados, colecionados e passados
de mão em mão, dentro das igrejas do Novo Testamento, assegura-nos que
eram tidos como proféticos ou divinamente inspirados desde o começo da
igreja de Cristo.
A leitura pública dos livros do Novo Testamento. Era costume
judaico ler as Escrituras no sábado (cf. Lc 4.16). A igreja deu continuidade
a esse costume no dia do Senhor. Paulo admoestou a Timóteo a que
persistisse "em ler, exortar e ensinar" (1Tm 4.13). E aos colossenses Paulo
escreveu: "Depois que esta epístola tiver sido lida entre vós, fazei que
também o seja na igreja dos laodicenses, e a que veio da Laodicéia lede-a
vós também" (Cl 4.16). A leitura em público dessas cartas como Escrituras
Sagradas é prova de sua aceitação desde o início, pela igreja do Novo
Testamento, por terem autoridade divina.
A circulação dos livros do Novo Testamento. O texto de Colossenses,
mencionado acima, revela outro fato muito importante. Os livros escritos
para uma igreja tencionavam ser de valor para outras igrejas também, e por
isso circulavam para leitura pública. É possível que essa prática de
intercambiar os livros inspirados induziu os líderes da igreja a produzir as
primeiras cópias do Novo Testamento. Essa ampla circulação de cartas
mostra que outras igrejas, além daquela que originariamente fora a
destinatária, reconheciam tais cartas como Sagradas Escrituras e assim as
liam.
A coleção dos livros do Novo Testamento. Os livros dos Novo
Testamento circulavam entre as igrejas para ser lidos, mas Pedro também
nos informa que eram colecionados. Parece que o próprio Pedro possuía
uma coleção das cartas de Paulo que aquele apóstolo classificava
plenamente como escritos inspirados no mesmo nível do Antigo
Testamento. Assim escreveu Pedro: "Tende por salvação a longanimidade
de nosso Senhor, como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu,
segundo a sabedoria que lhe foi dada. Em todas as suas cartas ele escreve
da mesma forma, falando acerca destas coisas. [...] os indoutos e
inconstantes [as] torcem, como o fazem também com as outras Escrituras,
para sua própria perdição" (2Pe 3.15,16). Tais livros circulavam entre as
igrejas, eram lidos, copiados e colecionados pelas igrejas do Novo
Testamento, sendo colocadas ao lado do cânon do Antigo Testamento; sem
ser questionados, esses livros eram tidos como escritos inspirados.
Citação dos livros do Novo Testamento. Os livros do Antigo
Testamento foram escritos ao longo de um espaço de tempo muito maior
que os do Novo. É por isso que há mais citações de profetas mais antigos
pelos profetas mais recentes do Antigo Testamento. O fato, porém, de
haver citações de livros mais antigos do Novo Testamento em livros mais
recentes dessa parte da Bíblia revela-nos outro fato: aqueles livros eram
tidos como inspirados por seus contemporâneos. Paulo cita o evangelho de
Lucas, chamando-o Escritura, em 1Timóteo 5.18. "Digno é o obreiro do
seu salário" (cf. Lc 10.7). Judas cita com clareza 2Pedro 3.2,3, ao escrever:
"... os quais diziam: No último tempo haverá escarnecedores, andando
segundo as suas ímpias concupiscências" (Jd 18). Lucas faz referência a
sua obra anterior (At 1.1), e João faz alusão a seu próprio evangelho (1Jo
1.1). Paulo menciona outra carta que havia escrito aos coríntios (1Co 5.9).
Ainda que alguns desses exemplos não nos fornecem citações formais,
ajudam, no entanto, a ilustrar a realidade de que dentro do próprio Novo
Testamento existe o reconhecimento que um autor sagrado faz de outro.
Esse processo amplo, generalizado, de fazer circular, ler, copiar, colecionar
e citar os livros do Novo Testamento ilustra satisfatoriamente o
reconhecimento de que esses livros reivindicavam inspiração divina.
Apoio à reivindicação de inspiração da Igreja primitiva
Todos os autores do Novo Testamento são mencionados pelo menos
por um pai apostólico por terem autoridade divina. Esses pais da igreja
vieram uma ou duas gerações após o encerramento do Novo
Testamento(i.e, antes de 150 d.C). Na verdade, eles representam o vínculo
ininterrupto da reivindicação do Novo Testamento a favor de sua
inspiração divina, desde os tempos dos apóstolos, passando pela fundação
da igreja e, sem quebra nem interrupção, pelos séculos e milênios que se
seguiram
Os primeiros pais da igreja. Os escritos mais antigos do cristianismo
contêm inúmeras referências às Escrituras do Novo Testamento. Muitas
dessas citações trazem as mesmas designações autorizadas de quando os
autores do Novo Testamento citam o Antigo. A pretensa Epístola de
Barnabé (c. 70-130), obra atribuída infundadamente ao companheiro de
Paulo, cita Mateus 26.31 como aquilo que "Deus disse" (5.12). Depois,
chama Mateus 22.14 "Escritura" (4.14). Clemente de Roma, em sua
Epístola aos coríntios (c. 95-97), chama os evangelhos sinóticos (Mateus,
Marcos e Lucas) "Escrituras". Ele emprega também as expressões "disse
Deus" e "está escrito", a fim de indicar passagens do Novo Testamento (cf.
caps. 36 e 46). Inácio de Antioquia (110 d.C.) escreveu sete cartas, nas
quais fez numerosas citações do Novo Testamento. Policarpo (c. 110-135),
um dos discípulos do apóstolo João, fez muitas citações dos livros do Novo
Testamento em sua Epístola aos filipenses. Às vezes, esse autor introduz
tais citações com termos como "dizem as Escrituras" (cf. cap. 12). A obra
denominada O pastor, de Hermas (c. 115-140), foi escrita em estilo
apocalíptico (visões), semelhante ao de Apocalipse, com inúmeras
referências ao Novo Testamento. O didaquê (c. 100-120), ou Ensino dos
doze apóstolos, como às vezes é chamado, registra muitas citações livres
do Novo Testamento. Papias (c. 130-140) inclui o Novo Testamento num
livro intitulado Interpretação dos discursos do Senhor, mesma expressão
usada por Paulo em referência ao Antigo Testamento, em Romanos 3.2. A
chamada Epístola a Diogneto (c. 150) faz muitas alusões ao Novo
Testamento sem um título.
Fica notório o seguinte, no uso que os pais apostólicos fizeram do
Novo Testamento: o Novo Testamento, à semelhança do Antigo, era tido
como inspirado por Deus. Com freqüência as citações são livres e sem
menção da fonte original. Todavia, qualquer pessoa que ler os escritos dos
pais apostólicos necessariamente verá que os livros do Novo Testamento
gozavam da mesma elevada estima atribuída ao Antigo Testamento.
Pais da igreja de época posterior. A partir da segunda metade do
século II encontra-se apoio contínuo à reivindicação de inspiração feita
pelo Novo Testamento. Justino Mártir (m. 165) considerava os evangelhos
"a voz de Deus" (Apologia, 1,65). "Não devemos supor", escreveu ele,
"que a linguagem provém de homens inspirados, mas da Palavra Divina
que os move" (1,36). Taciano (c. 110-180), discípulo de Justino, cita João
1.5 como "Escritura", no capítulo 13 de sua Apologia. Irineu (c. 130-202),
em sua obra Contra heresias, escreveu: "Pois o Pai de todos nós deu o
poder do evangelho a seus apóstolos, por intermédio de quem viemos a
conhecer a verdade [...] esse evangelho que eles pregaram. Depois, pela
vontade de Deus, eles nos legaram as Escrituras, para que fossem 'pilar e
alicerce' de nossa fé" (5,67).
Clemente da Alexandria (c. 150-215) classifica os dois Testamentos,
o Novo e o Antigo, como igualmente inspirados por Deus, com a mesma
autoridade divina, dizendo: "As Escrituras [...] na Lei, nos Profetas e, além
dessas, no abençoado Evangelho [...] são válidas por causa de sua
autoridade onipotente" (Strômata [Seleções], 2,408-9). Tertuliano (c. 160-
220) afirmava que os quatro evangelhos "são edificados na base certa da
autoridade apostólica, de modo que são inspirados em sentido muitíssimo
diferente dos escritos de um cristão espiritual".7 Hipólito (c. 170-236),
discípulo de Irineu, oferece-nos uma das mais definitivas declarações a
respeito da inspiração encontradas nos pais primitivos. Na sua obra
Tratado sobre Cristo e o Anticristo, ao falar dos escritores do Novo
Testamento, assim se expressou:
Esses homens abençoados [...] tendo sido aperfeiçoados pelo Espírito
da profecia, são dignamente honrados pela própria Palavra, foram trazidos
a uma harmonia íntima [...] como instrumentos, e, tendo a Palavra dentro
deles, por assim dizer, a fim de fazer ressoar as notas [...] pelo Senhor
foram movidos, e anunciavam o que Deus queria que anunciassem. É que
eles não falavam de sua própria capacidade [...] falavam daquilo que lhes
era [revelado] unicamente por Deus.8
Orígenes (c. 185-254), professor em Alexandria, também nutria
opiniões fortemente enraizadas quanto à inspiração. Cria ele que "o
Espírito inspirou cada santo, fosse profeta, fosse apóstolo; e não havia um
Espírito fios homens da antiga dispensação e outro naqueles que foram
inspirados por ocasião do advento de Cristo" (Dos princípios). É que em
sua plenitude e inteireza "as Escrituras foram escritas pelo Espírito" (16,6).
O bispo Cipriano (c. 200-258) confirmava com toda a clareza a inspiração
do Novo Testamento, declarando ser ele "Escrituras Divinas" dadas pelo
Espírito Santo. Eusébio de Cesaréia (c. 265-340), notável historiador da
igreja, expôs e catalogou os livros inspirados dos dois Testamentos em sua
História eclesiástica. Atanásio de Alexandria (c. 295-373), conhecido
Como o "pai da ortodoxia", por causa de sua defesa da divindade de Cristo
contra Àrio, foi o primeiro a usar a palavra cânon em referência aos livros
7 Brooke FossWBSTCOTT, An introduction to the study of the gospels, New York, Macmillan,1902,
p. 421.
8 Ap, ibid., p. 418-19. Colchetes deWestcott.
do Novo Testamento. Cirilo de Jerusalém (c. 315-316) fala das "Escrituras
divinamente inspiradas tanto do Antigo como do Novo Testamento".
Depois de relacionar os 22 livros das Escrituras hebraicas e 26 do Novo
Testamento (todos menos o Apocalipse), acrescentou: "Aprendei também
diligentemente, com a igreja, quais são os livros do Antigo Testamento, e
quais são os do Novo. E rogo-vos com veemência: Não leiais nenhum dos
escritos apócrifos" (Das Escrituras sagradas).
É desnecessário prosseguir. Basta-nos salientar, nesta altura, que a
doutrina ortodoxa da inspiração do Novo Testamento teve continuidade ao
longo dos séculos, passando pela Idade Média, chegando à Reforma e
penetrando no período moderno da história da igreja. Louis Gaussen
resumiu a situação muito bem ao escrever o seguinte:
Com a exceção única de Teodoro de Mopsuéstia [c. 400], [...]
verificou-se que foi impossível produzir, no longo decurso dos oito
primeiros séculos do cristianismo, um único doutor da igreja que negasse a
plena inspiração das Escrituras, a não ser a negação que se encontra no seio
das mais violentas heresias que têm atormentado a igreja cristã.9
Em resumo, portanto, a inspiração do Novo Testamento baseia-se na
promessa de Cristo de que seus discípulos seriam dirigidos pelo Espírito
em seus ensinos a respeito do Senhor. Os discípulos creram nessa promessa
e a assimilaram, havendo claros indícios de que os próprios autores do
Novo Testamento, bem como os de sua época, reconheceram o
cumprimento dessas promessas. Criam em que o Novo Testamento havia
sido divinamente inspirado, pelo que, desde os primórdios do início dos
registros cristãos, tem havido apoio unânime à doutrina da inspiração do
Novo Testamento, em igualdade de condições com o Antigo Testamento.
5. Evidências da inspiração da Bíblia
Os cristãos têm sido desafiados, ao longo dos séculos, a apresentar as
9 Theopneustia: the plenary inspiration of the Holy Scriptures, trad. David Scott, Chicago, BICA,
n.d., p. 139-40,
razões em defesa de sua fé (1Pe 3.15). Visto que as Escrituras se firmam
nos alicerces da fé em Cristo, repousou sobre QH ombros dos apologistas
cristãos a tarefa de apresentar evidências da Inspiração divina da Bíblia.
Reivindicar que a Bíblia é inspirada por Deus é uma coisa, mas comprovar
essa reivindicação é coisa bem diferente. Antes de examinarmos as
evidências que dão apoio à doutrina da inspiração da Bíblia, vamos resumir
com precisão o que afirma a doutrina da inspiração.
Resumo da reivindicação a favor da inspiração da Bíblia
Não devemos confundir inspiração da Bíblia com inspiração poética.
A inspiração que se atribui à Bíblia diz respeito à autoridade dada por Deus
quanto a seus ensinos, os quais hão de formar o pensamento e a Vida do
crente.
Explicação bíblica da inspiração
A palavra inspiração significa "soprado por Deus", ou seja, "que
passou pelo hálito de Deus". É o processo mediante o qual as Escrituras, a
saber, os escritos sagrados, foram revestidos de autoridade divina no que
concerne à doutrina e à prática (2Tm 3.16,17). Esse revestimento divino foi
dado aos escritos, não aos escritores. No entanto, estes foram movidos pelo
Espírito para escreverem suas mensagens vindas de Deus. Por Uso, a
inspiração, quando vista como processo total, é fenômeno sobrenatural
ocorrido quando escritores movidos pelo Espírito registraram para
escreverem suas mensagens sopradas por Deus. Existem três elementos
nesse processo total de inspiração: a causa divina, a mediação profética e a
resultante autoridade de que se reveste o documento (v. caps. 1 e 2).
Os três elementos da inspiração. O primeiro elemento da inspiração
é a sua causa: Deus, que a origina. Deus é a Força Primordial que moveu
profetas e apóstolos a escrever. A motivação primária por trás dos escritos
inspirados é o desejo de Deus de comunicar-se com o ser humano. O
segundo fator é a mediação humana. A Palavra de Deus nos veio por meio
de homens de Deus. Deus faz uso da pessoa humana como instrumento
para transmitir sua mensagem. Por último, a mensagem profética escrita foi
revestida de autoridade divina. As palavras dos profetas são a Palavra de
Deus.
As características dos escritos inspirados. A primeira característica
da inspiração fica implícita no fato de que se trata de escrito inspirado, ou
seja, é inspiração verbal. As próprias palavras dos profetas foram dadas
por, Deus mesmo, não ditadas, mas pelo emprego do vocabulário e do
estilo dos próprios profetas, dirigidos pelo Espírito. A inspiração afirma
ainda ser plenária (total, completa). Nenhum trecho das Escrituras foge ao
alcance da inspiração divina. Assim escreveu Paulo: "Toda Escritura é
divinamente inspirada". Além disso, a inspiração implica a inerrância dos
ensinos dos documentos originais (chamados autógrafos). Tudo quanto
Deus proferiu é verdadeiro e isento de erro, e a Bíblia é tida como
enunciação de Deus. Por fim, a inspiração resulta na autoridade divina de
que se revestem as Escrituras. O ensino da Bíblia se impõe ao crente no
que tange à sua fé e prática.
A reivindicação da Bíblia quanto à sua inspiração
A inspiração não é algo que meramente os cristãos atribuam à Bíblia;
é reivindicação que a própria Bíblia faz a respeito de si mesma. Há
praticamente centenas de referências no texto da Bíblia que afirmam sua
origem divina (v. caps. 3 e 4).
A reivindicação da inspiração do Antigo Testamento. O Antigo
Testamento afirma ser um documento com mensagem profética. A
expressão muito comum "assim diz o SENHOR" enche suas páginas. Os
falsos profetas e suas obras foram excluídos da casa do Senhor. As
profecias que comprovadamente provinham de Deus foram preservadas em
lugar especial, sagrado. Essa coleção de escritos sagrados que ia
aumentando foi reconhecida e muito citada como Palavra de Deus.
Jesus e os autores do Novo Testamento tinham esses escritos na mais
conta; para eles, não podiam ser revogados por serem a própria Palavra de
Deus, cheia de autoridade e de inspiração. Mediante numerosas idas ao
Antigo Testamento como um todo, a suas seções básicas e lamente cada
um de seus livros, os autores do Novo Testamento atestaram com toda a
força e convicção a certeza da inspiração divina que se reveste o Antigo
Testamento.
A reivindicação da inspiração do Novo Testamento. Os escritos
apostólicos ousadamente aludidos da mesma forma autorizada por que se
caraterizava o Antigo Testamento como Palavra de Deus. Eram chamados
"Escrituras", "profecia" etc. Cada livro do Novo Testamento contém
reivindicação de autoridade divina. A igreja do período neotestamentário
fazia circular, lia, colecionava e mencionava os livros do Novo Testamento,
ao lado das Escrituras inspiradas do Antigo Testamento
Os da era apostólica e os que de imediato lhe sucederam
reconheciam a origem divina dos escritos do Novo Testamento, ao lado da
autoridade fina do Antigo Testamento. Salvo casos de heréticos, todos os
grandes pais da igreja cristã, desde os tempos mais remotos, creram na
inspiração divina do Novo Testamento, e assim a ensinaram. Em suma,
sempre houve uma reivindicação contínua e firme da inspiração do Antigo
e do Novo Testamento, desde o tempo de sua composição até o presente
momento. Nos tempos modernos, essa reivindicação vem sendo seriamente
desafiada por muitos estudiosos dentro e fora da igreja. Esse desafio
mostra a necessidade de fundamentarmos a reivindicação de inspiração da
Bíblia.
Apoio à reivindicação bíblica de inspiração
Os defensores da fé cristã têm reagido a esse desafio de maneiras
variadas. Alguns transformaram o cristianismo num sistema racional, ou-
&0S afirmam crer por ser "absurdo", mas a grande massa de cristãos bem
informados, ao longo dos séculos, tem evitado tanto o racionalismo como o
fideísmo. Sem sustentar a irrevocabilidade absoluta, nem o ceticismo
completo, os apologistas cristãos têm dado "uma razão da esperança que há
neles". A seguir apresentamos uma síntese das evidências da doutrina
bíblica da inspiração.
Evidência Interna da inspiração da Bíblia
Há duas espécies de evidências que se devem levar em conta no que
diz respeito à inspiração da Bíblia: a evidência que brota da própria Bíblia
(chamada evidência interna), e a que surge de fora da Bíblia (conhecida
como evidência externa). Há várias espécies de evidência interna já
apresentadas.
A evidência da autoridade que se autoconfirma. Há quem afirme que
a Bíblia fala com autoridade própria, cheia de convicção, à semelhança do
rugido de um leão. O Senhor Jesus enchia as multidões de grande
admiração, porque "os ensinava como tendo autoridade" (Mc 1.22), e, de
modo semelhante, a expressão "assim diz o Senhor", encontrada nas
Escrituras, fala por si mesma. Quando uma voz falou a Jó, saída de um
redemoinho, ficou bem evidente para o patriarca ser a voz do Senhor (Jó
38). As palavras das Escrituras não precisam ser defendidas; precisam
apenas ser ouvidas, para que se saiba que são a Palavra de Deus. O modo
mais convincente de demonstrar a autoridade de um leão é soltá-lo. De
modo semelhante, a inspiração da Bíblia não precisa ser defendida; antes,
os ensinos da Bíblia precisam apenas ser explanados. Afirma-se que Deus
pode falar mais eficazmente quando fala por si mesmo. A Bíblia pode
defender sua própria autoridade, desde que sua voz se faça ouvir.
A evidência do testemunho do Espírito Santo. Intimamente
relacionado com a evidência da autoridade das Escrituras, que se
demonstra por si mesma, temos o testemunho do Espírito Santo. A Palavra
de Deus confirma-se perante os filhos de Deus pelo Espírito de Deus. O
testemunho íntimo de Deus no coração do crente, à medida que este vai
lendo a Bíblia, é evidência da origem divina da Bíblia. O Espírito Santo
não só dá testemunho ao crente de que este é filho de Deus (Rm 8.16), mas
também afirma que a Bíblia é a Palavra de Deus (2Pe 1.20,21). O mesmo
Espírito que comunica a verdade de Deus também confirma perante o
crente que a Bíblia é a Palavra de Deus. Desde o século I o consenso da
comunidade cristã, na qual opera o Espírito Santo, tem sido que os livros
da Bíblia são a Palavra de Deus. Assim, a Palavra de Deus recebe
confirmação da parte do Espírito de Deus.
A evidência da capacidade transformadora da Bíblia. Outra
evidência denominada "interna" é a capacidade que tem a Bíblia de
converter o incrédulo e de edificá-lo na fé cristã. Assim diz Hebreus: "A
palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes..." (4.12). Milhares e milhares têm experimentado esse poder;
viciados em drogas têm sido curados pela Palavra; delinqüentes têm sido
transformados; o ódio tem cedido lugar ao amor; tudo isso pela leitura da
Palavra de Deus (1Pe 2.2). Os entristecidos recebem conforto os pecadores
são repreendidos, os negligentes são exortados pelas Escrituras, A palavra
de Deus tem o poder, o dinamismo transformador de Deus. A evidência de
que Deus atribuiu sua autoridade à Bíblia está em seu poder evangelístico e
edificador.
A evidência da unidade da Bíblia. Uma evidência mais formal da
inspiração da Bíblia está em sua unidade. Sendo constituída de 66 livros
escritos ao longo de 1 500 anos, por cerca de quarenta autores, em diversas
línguas, com centenas de tópicos, é muito mais que mero acidente que a
Bíblia apresente espantosa unidade temática — Jesus Cristo. Um problema
— o pecado— e uma solução — o Salvador Jesus— unificam as páginas
da Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse. Se a compararmos a um manual
médico redigido sob tão grande variedade, a Bíblia apresenta marcas
notáveis de unidade divina. Essa é uma questão de inigualável validade,
uma vez que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas engendraram a
composição da Bíblia. Os livros iam sendo colecionados e acrescentados, à
medida que iam sendo escritos pelos autores, os profetas. Eram guardados
simplesmente por serem tidos como inspirados. Só mediante reflexão
posterior, tanto da parte de profetas (e.g.,1Pe 1.10,11) quanto de autores de
gerações futuras, é que se descobriu que na verdade a Bíblia é um livro só,
cujos "capítulos" foram escritos por homens sem conhecimento visível de
sua estrutura global. O papel desses autores da Bíblia seria comparável ao
de diferentes escritores que estivessem escrevendo capítulos de uma
novela, sem que tivessem nem mesmo um esboço geral da história. Toda a
unidade que a Bíblia demonstre certamente adveio de algo que se achava
fora do alcance de seus autores humanos.
Evidência externa da inspiração da Bíblia
A evidência interna da inspiração é, em grande parte, de natureza
subjetiva. Relaciona-se àquilo que o crente vê ou sente em sua experiência
pessoal com a Bíblia. Com a possível exceção da última evidencia
mencionada, a saber, a unidade da Bíblia, a evidência interna está
disponível apenas para os que se acham dentro do cristianismo. O
incrédulo não ouve a voz de Deus, tampouco sente o testemunho do
Espírito de Deus e jamais sente o poder edificador das Escrituras em sua
vida. Se o incrédulo não penetrar pela fé no interior do cristianismo, essa
evidência pouco ou nenhum valor e persuasão terá em sua vida. É aqui,
então, que a evidência externa exerce papel crucial. Funciona como balizas
ou sinais que conduzem ao "interior" da verdadeira vida cristã. Trata-se de
testemunho público de algo inusitado, que serve para atrair a atenção do ser
humano para a voz de Deus nas Escrituras.
A evidência baseada na historicidade da Bíblia. Grande parte do
conteúdo bíblico é história e, por isso mesmo, passível de constatação.
Existem duas espécies principais de apoio da história bíblica: os artefatos
arqueológicos e os documentos escritos. No que diz respeito aos artefatos
desenterrados, nenhuma descoberta arqueológica invalidou um ensino ou
relato bíblico. Ao contrário, como escreveu Donald J. Wiseman: "A
geografia das terras mencionadas na Bíblia e os remanescentes visíveis da
antigüidade foram gradativamente registrados, até que hoje, em sentido
mais amplo, foram localizados mais de 25 000 locais, nesta região, que
datam dos tempos do Antigo Testamento".10 Aliás, grande parte da antiga
crítica à Bíblia foi firmemente refutada pelas descobertas arqueológicas
que demonstraram a existência da escrita nos dias de Moisés, a história e a
cronologia dos reis de Israel e até mesmo a existência dos hititas, povo até
há pouco só mencionado na Bíblia.
A descoberta amplamente divulgada dos rolos do mar Morto ilustra
algo não muito bem conhecido, a saber, que existem milhares de
manuscritos tanto do Antigo como do Novo Testamento, o que contrasta
com o punhado de originais disponíveis de muitos clássicos seculares de
grande importância. Isso significa que a Bíblia é o livro do mundo antigo
mais bem documentado que existe. É verdade que nenhuma descoberta
histórica representa evidência direta de alguma afirmação espiritual feita
pela Bíblia, como, por exemplo, a reivindicação de ser inspirada por Deus;
no entanto, a historicidade da Bíblia fornece com certeza uma
comprovação indireta de sua inspiração. É que a confirmação da exatidão
da Bíblia em questões factuais confere credibilidade às suas declarações e
10 Archaelogical confirmation of the Old Testament, in: Carl F. H. HENRY, org., Revelation and the
Bible, Grand Rápids, Baker, 1958, p. 301-2.
ensinos em outros assuntos. Disse Jesus: "Se vos falei de coisas terrestres,
e não crestes, como crereis, se vos falar das celestiais?" (Jo 3.12).
A evidência do testemunho de Cristo. O testemunho de Cristo é
evidência relacionada à da historicidade dos documentos bíblicos. Visto
que o Novo Testamento é documentado como livro histórico e esses
mesmos documentos históricos nos fornecem o ensino de Cristo a respeito
da inspiração da Bíblia, resta-nos apenas presumir a veracidade de Cristo,
para convencer-nos firmemente da inspiração da Bíblia. Se Jesus Cristo
possui alguma autoridade ou integridade como mestre religioso, podemos
concluir que a Bíblia é inspirada por Deus. O Senhor Jesus ensinou que a
Bíblia é a Palavra de Deus.
Se alguém quiser provar ser essa assertiva falsa, deverá primeiro
rejeitar a autoridade que tinha Jesus de se pronunciar sobre a questão da
inspiração.
As evidências escriturísticas revelam irrefutavelmente que Jesus
confirmou a autoridade divina da Bíblia (V. cap. 3). O texto do evangelho
como um todo, com amplo apoio histórico revela que Jesus era homem de
integridade e de verdade. O argumento portanto, é este: se o que Jesus
ensinou é a verdade, e Jesus ensinou que a Bíblia é inspirada, segue-se que
é verdade que a Bíblia é inspirada por Deus.
A evidência da profecia. Outro testemunho externo dotado de grande
força em apoio da inspiração das Escrituras é o fato da profecia cumprida.
De acordo com Deuteronômio 18, o profeta era tido como falso quando
fazia predições que não se cumprissem. Até o presente momento, nenhuma
profecia incondicional da Bíblia a respeito de acontecimentos ficou sem
cumprimento. Centenas de predições, algumas delas feitas centenas de
anos antes de se cumprirem, concretizaram-se literalmente. A época do
nascimento de Jesus (Dn 9), a cidade em que ele haveria de nascer (Mq
5.2) e a natureza de sua concepção e nascimento (Is 7.14) foram preditos
no Antigo Testamento, bem como dezenas de outras minúcias de sua vida,
morte e ressurreição. Outras profecias, como a da explosão da instrução e
da comunicação (Dn 12.4), a da repatriação de Israel e a da repovoação da
Palestina (Is 61.4), estão sendo cumpridas em nossos dias. Outros livros
reivindicam inspiração divina, como o Alcorão o partes do Veda. Todavia,
nenhum desses livros contém predições do futuro.
O resultado é que a Bíblia conta com um argumento muito forte a
favor de sua autoridade divina: suas profecias, que sempre se cumprem.
A evidência da influência da Bíblia. Nenhum outro livro tem sido tão
largamente disseminado, nem exercido tão forte influência sobre o curso
dos acontecimentos mundiais do que a Bíblia. As Escrituras Sagradas têm
sido traduzidas em mais línguas, têm sido impressas em maior número de
exemplares, têm influenciado mais o pensamento, inspirado mais as artes e
motivado mais as descobertas do que qualquer outro livro. A Bíblia foi
traduzida em mais de mil línguas, abrangendo mais de 90% da população
do mundo. Suas tiragens somam alguns bilhões de exemplares. Os
bestsellers que têm vindo em segundo lugar, ao longo dos séculos, nunca
chegam perto do detentor perpétuo do primeiro lugar, a Bíblia. A influência
da Bíblia e de seu ensino sobre o mundo ocidental está bem à mostra para
todos quantos estudam a história. O papel de forte influência
desempenhado pelo Ocidente sobre o desenrolar dos acontecimentos
mundiais fica igualmente evidente. As Escrituras judeu-cristãs têm
influenciado mais a civilização que qualquer outro livro ou combinação de
livros do mundo. Na verdade, nenhuma outra obra religiosa ou de fundo
moral no mundo excede a profundidade moral contida no princípio do
amor cristão, e nenhuma apresenta conceito espiritual mais majestoso
sobre Deus do que o conceito que a Bíblia oferece. A Bíblia apresenta ao
homem os mais elevados ideais que já pautaram a civilização.
A evidência da manifesta indestrutibilidade da Bíblia. A despeito (ou
talvez por conta) de sua tremenda importância, a Bíblia tem sofrido muito
mais ataques perversos do que seria de esperar, em se tratando de um livro.
No entanto, a Bíblia tem resistido a todos os ataques e a todos os seus
atacantes. Diocleciano tentou exterminá-la (c. 303 d.C); no entanto, a
Bíblia é hoje o livro mais impresso e mais divulgado do mundo. Críticos da
Bíblia no passado tachavam-na de composta, na maior parte, por historietas
mitológicas, mas a arqueologia lhe comprovou a historicidade. Seus
antagonistas atacam seus ensinos, tachando-os de primitivos e obsoletos,
mas os moralistas exigem que seus ensinos a respeito do amor sejam
postos em prática na sociedade moderna. Os céticos têm lançado dúvidas
sobre a confiabilidade da Bíblia; todavia, mais pessoas hoje se convencem
de suas verdades do que em toda a história. Prosseguem os ataques da parte
de alguns cientistas, de alguns psicólogos e de alguns líderes políticos, mas
a Bíblia permanece ilesa, indestrutível. Ela se parece com uma muralha de
um metro e meio de altura por um metro e meio de largura: é inútil tentar
derrubá-la com assopros. A Bíblia continua mais forte que nunca, depois
desses ataques. Assim se manifestara a seu respeito o Senhor Jesus:
"Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão" (Mc 13.31).
A evidência oriunda da integridade de seus autores humanos. Não
existem razões sólidas em que basear a idéia de que os autores das
Escrituras não eram honestos e sinceros. Por tudo quanto se sabe de suas
vidas e até pelo fato de haverem morrido por causa da fé que abraçaram, os
autores da Bíblia estavam totalmente convencidos de que Deus lhes havia
falado. Que faremos de mais de quinhentos homens (1Co 15.6) que
apresentam como evidência da autoridade divina de sua mensagem o fato
de terem visto a Jesus de Nazaré, crucificado sob o poder de Pôncio
Pilatos, agora vivo e em perfeitas condições? Que faremos da afirmação
deles, segundo a qual viram a Jesus cerca de doze vezes, num período de
um mês e meio? e segundo a qual conversaram com ele, comeram com ele,
viram suas feridas, tocaram-no, e até o mais cético dentre eles caiu de
joelhos e clamou: "Senhor meu e Deus meu" (Jo 20.28)? Se alguém crer
que estavam todos intoxicados ou iludidos, isso seria equivalente a
violentar a própria credulidade, se considerarmos o número de vezes em
que Cristo se encontrou com seus discípulos após a ressurreição e se
considerarmos a natureza desses encontros, além do efeito duradouro que
exerceram sobre os discípulos. Todavia, depois de aceitar o fato
fundamental da integridade desses homens, ainda vemos diante de nós o
fenômeno inusitado de pessoas — centenas delas— que enfrentariam a
morte por causa da convicção de que Deus lhes havia concedido autoridade
para falar e para escrever em nome do Senhor. Quando homens sadios
mentalmente, dotados de reconhecida integridade moral, reivindicam
inspiração divina e oferecem como evidência o fato de haverem mantido
comunicações com o Cristo ressurreto, todos as pessoas de boa fé, que
buscam a verdade, precisam reconhecer a realidade desses fatos. Em suma,
a honestidade dos escritores da Bíblia constitui comprovante da autoridade
bíblica que reveste seus escritos.
Outros argumentos têm sido formulados para comprovar a inspiração
da Bíblia, mas os principais, os que sustentam o maior peso da defesa, são
esses. Será que esses argumentos provam que a Bíblia é inspirada? Não.
Não representam provas dotadas de conclusões racionais inescapáveis. Até
mesmo um filósofo amador pode criar contra-argumentos que neutralizam
a lógica da argumentação. E, ainda que tal argumentação comprovasse a
inspiração da Bíblia, não se concluiria daí que os argumentos conseguiriam
persuadir e satisfazer a todos. Em vez disso, temos evidências,
testemunhos, testemunhas. Como testemunhos, precisam ser examinados
para uma avaliação global. A seguir, o júri que existe na alma de cada
pessoa deverá tomar sua decisão — decisão fundada não em provas
racionais, inescapáveis, mas em evidências que ficam "acima de quaisquer
dúvidas racionais".
Talvez tudo que seria necessário acrescentar aqui é que, se a Bíblia
estivesse sob julgamento num tribunal, e fizéssemos parte do júri, e
devêssemos apresentar um veredicto, com base num exame global,
completo, das reivindicações e das credenciais alegadas da Bíblia como
Escrituras Sagradas, inspiradas por Deus, seríamos compelidos a votar da
seguinte forma: "A Bíblia é culpada de ser inspirada, conforme acusação".
O leitor também precisa tomar sua decisão. Para os que têm a tendência à
indecisão, resta o lembrete incisivo das palavras de Pedro: "Senhor, para
quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna" (Jo 6,68). Em outras
palavras, se a Bíblia — com sua reivindicação categórica de ser inspirada,
com suas características incomparáveis e suas credenciais múltiplas— não
for inspirada, então, a quem ou a que nos dirigiremos? É nela que
encontramos as palavras de vida eterna.
6. As características da canonicidade
Que livros fazem parte da Bíblia? Que diremos a respeito dos
chamados livros ausentes? Como foi que a Bíblia veio a ser composta de
66 livros? Nos próximos capítulos trataremos de responder a essas
perguntas. Esse assunto intitula-se canonicidade. Trata-se do segundo
grande elo da corrente que vem de Deus até nós. A inspiração é o meio
pelo qual a Bíblia recebeu sua autoridade: a canonização é o processo pelo
qual a Bíblia recebeu sua aceitação definitiva. Uma coisa é um profeta
receber uma mensagem da parte de Deus, mas coisa bem diferente é tal
mensagem ser reconhecida pelo povo de Deus. Canonicidade é o estudo
que trata do reconhecimento e da compilação dos livros que nos foram
dados por inspiração de Deus.
Definição de canonicidade
A palavra cânon deriva do grego kanõn ("cana, régua"), que, por sua
vez, se origina do hebraico kaneh, palavra do Antigo Testamento que
significa "vara ou cana de medir" (Ez 40.3). Mesmo em época anterior ao
cristianismo, essa palavra era usada de modo mais amplo, com o sentido de
padrão ou norma, além de cana ou unidade de medida. O Novo Testamento
emprega o termo em sentido figurado, referindo-se a padrão ou regra de
conduta (Gl 6.16).
Emprego da palavra "cânon" pelo cristão da igreja primitiva
Nos primórdios do cristianismo, a palavra cânon significava "regra"
de fé, ou escritos normativos (i.ev as Escrituras autorizadas). Por volta da
época de Atanásio (c. 350), o conceito de cânon bíblico ou de Escrituras
normativas já estava em desenvolvimento. A palavra cânon aplicava-se à
Bíblia tanto no sentido ativo como no passivo. No sentido ativo, a Bíblia é
o cânon pelo qual tudo o mais deve ser julgado. No sentido passivo, cânon
significava a regra ou padrão pelo qual um escrito deveria ser julgado
inspirado ou dotado de autoridade. Esse emprego em duas direções causa
certa confusão, que tentaremos dissipar. Primeiramente, vamos verificar o
que significa cânon em relação à Escritura no sentido ativo. Em seguida,
verificaremos seu sentido passivo.
Alguns sinônimos de canonicidade
A existência de um cânon ou coleção de escritos autorizados antecede
o uso do termo cânon. A comunidade judaica coligiu e preservou as
Escrituras Sagradas desde o tempo de Moisés.
Escrituras Sagradas. Um dos conceitos mais antigos de cânon foi o
de escritos sagrados. O fato de os escritos de Moisés serem considerados
sagrados se demonstra pelo lugar santo em que eram guardados, ao lado da
arca da aliança (Dt 31.24-26). Depois de o templo ter sido edificado, esses
escritos sagrados foram preservados em seu interior (2Rs 22.8). A
consideração especial dada a esses livros especiais mostra que eram tidos
como canônicos, ou sagrados.
Escritos autorizados. A canonicidade das Escrituras também é
designada autoridade divina. A autoridade dos escritos mosaicos foi
salientada perante Josué e perante Israel (Js 1.8). Todos os reis de Israel
foram exortados a esse respeito: "Quando se assentar no trono do seu reino,
escreverá para si num livro uma cópia desta lei [...]. Conservará a cópia
consigo, e a lera todos os dias de sua vida, para que aprenda a temer ao
Senhor seu Deus, e a guardar todas as palavras desta lei..." (Dt 17.18,19).
Visto que esses livros vieram da parte de Deus, vieram revestidos de sua
autoridade. Sendo escritos dotados de autoridade, eram canônicos, i.e.,
normativos, para o crente israelita.
Livros que conspurcam as mãos. Na tradição de ensino de Israel,
surgiu o conceito de livros tão sagrados, ou santos, que aqueles que os
usassem ficariam com as mãos "conspurcadas". Assim diz o Talmude; "O
evangelho e os livros dos hereges não maculam as mãos; os livros de Ben
Sira quaisquer outros livros que tenham sido escritos desde sua época não
são canônicos" (Tosefta Yadaim, 3,5). Ao contrário, os livros do Antigo
Testamento hebraico na verdade tornam imundas as mãos, porque são
santos. Por isso, só os livros que exigissem que seu leitor passasse por uma
cerimônia especial de purificação é que eram considerados canônicos.
Livros proféticos. Como já dissemos antes (cap. 3), determinado livro
só era considerado inspirado se escrito por um profeta, ou porta-voz de
Deus. As obras e as palavras dos falsos profetas eram rejeitadas e jamais
agrupadas e guardadas num lugar santo. De fato, segundo Josefo (Contra
Ápion, 1,8), só os livros que haviam sido redigidos durante o período
profético, de Moisés até o rei Artaxerxes, podiam ser canônicos. Assim se
expressou Josefo: "Desde Artaxerxes até a nossa época tudo tem sido
registrado, mas nada foi considerado digno do mesmo crédito das obras do
passado, visto que a sucessão exata de profetas cessou". Foram, canônicos
apenas os livros de Moisés a Malaquias, pois só esses foram, escritos por
homens em sucessão profética. Do período de Artaxerxes (século IV a.C.)
até Josefo (século I d.C), não houve sucessão profética; por isso, não faz
parte do período profético. O Talmude faz a mesma afirmação, dizendo:
"Até esta altura [século IV a.C] os profetas profetizavam mediante o
Espírito Santo; a partir desta época inclinai os vossos ouvidos e ouvi as
palavras dos sábios" (Seder Olam Rabba, 30). Portanto, para ser canônico,
qualquer livro do Antigo Testamento deveria vir de uma sucessão profética,
durante o período profético.
A determinação da canonicidade
Essas considerações em torno da canonicidade ajudam-nos a
esclarecer o que significa Escrituras canônicas. A confusão existente entre
os sentidos ativo e passivo da palavra cânon trouxe ambigüidade à questão
do que determina a canonicidade de um livro.
Alguns conceitos deficientes sobre o que determina a canonicidade
Foram apresentadas várias opiniões a respeito do que determina a
canonicidade de um escrito. Essas posições confunde os cânones, ou regras
mediante as quais o crente descobre que determinado livro é inspirado
(sentido passivo da palavra cânon), com os cânones dos escritos
normativos que foram descobertos (sentido ativo da palavra cânon),
Assim, tais teorias são insatisfatórias quanto aos conceitos sobre o que
determina a canonicidade de um livro. Vamos examiná-las de modo
sucinto.
A concepção de que a idade determina a canonicidade. A teoria
segundo a qual a canonicidade de um livro é determinada pela sua
antigüidade, que tal livro veio a ser venerado por causa de sua idade, erra o
alvo por duas razões. Primeira: muitos livros velhíssimos, como o livro dos
justos e o livro das guerras do Senhor (Js 10.13 e Nm 21.14) nunca foram
aceitos no cânon. Em segundo lugar, há evidências de que os livros
canônicos foram introduzidos no cânon imediatamente, e não depois de
haverem envelhecido. E o caso dos livros de Moisés (Dt 31.24-26), de
Jeremias (Dn 9.2) e dos escritos do Novo Testamento produzidos por Paulo
(2Pe 3.16).
A concepção de que a língua hebraica determina a canonicidade. É
insatisfatória também a teoria segundo a qual os livros que fossem escritos
em hebraico, a língua "sagrada" dos hebreus, seriam considerados
sagrados, e os que houvessem sido escritos em outra língua não seriam
introduzidos no cânon. A verdade é que nem todos os livros redigidos em
hebraico foram aceitos, como é o caso dos livros apócrifos e de outros
documentos antigos não-bíblicos (v. Js 10.13). Além disso, há seções de
alguns livros aceitos no cânon sagrado que não foram escritas em hebraico
(Daniel 2.4b— 7.28 e Esdras 4.8— 6.18; 7.12-26 foram escritos em
aramaico).
A concepção de que a concordância do texto com a Tora determina a
sua canonicidade. É uma visão errônea, concernente à Tora (lei de
Moisés). Nem é necessário mencionar que quaisquer livros que
contradigam a Tora deviam ser rejeitados, tendo em vista a crença de que
Deus não poderia contradizer-se em suas revelações posteriores. Essa
teoria, porém, despreza duas questões de grande importância. Em primeiro
lugar, não era a Tora que determinava a canonicidade dos escritos que lhe
sucederam. Antes, o fator determinante da canonicidade da Tora era o
mesmo que determinaria a de todas as demais Escrituras Sagradas, a saber,
que os escritos fossem inspirados por Deus. Em outras palavras, a
concepção de que a concordância com a Tora determina a canonicidade de
um documento é insatisfatória porque não explica o que foi que determinou
a canonicidade da Tora. Em segundo lugar, tal teoria é demasiado
generalizante. Muitos outros textos que estavam de acordo com a Tora não
foram aceitos como inspirados. Os pais judeus criam que seu Talmude e
Midrash concordavam com a Tora, mas jamais os consideraram canônicos.
O mesmo vale dizer de muitos escritos cristãos em relação ao Novo
Testamento.
A concepção de que o valor religioso determina a canonicidade.
Essa é outra hipótese: que o valor religioso de um livro determina sua
inclusão no cânon sagrado. Outra vez temos aqui o carro adiante dos bois.
É axiomático afirmar que, se um livro não tiver algum tipo de valor
espiritual, deve ser rejeitado e eliminado do cânon. Também é verdade que
nem todos os livros que possuem algum valor espiritual sejam
automaticamente canônicos, como o comprovam alguns tesouros da
literatura judeu-cristã, dos quais são alguns apócrifos. O fato mais
importante, no entanto, é que essa teoria faz confusão entre causa e efeito.
Não é o valor religioso que determina a canonicidade de um texto; é sua
canonicidade que determina seu valor religioso. De forma mais precisa,
não é o valor de um livro que determina sua autoridade divina, mas a
autoridade divina é que determina seu valor.
A canonicidade é determinada pela inspiração
Os livros da Bíblia não são considerados oriundos de Deus por se
haver descoberto neles algum valor; são valiosos porque provieram de
Deus — fonte de todo bem. O processo mediante o qual Deus nos concede
sua revelação chama-se inspiração. É a inspiração de Deus num livro que
determina sua canonicidade. Deus dá autoridade divina a um livro, o os
homens de Deus o acatam. Deus revela, e seu povo reconhece o que o
Senhor revelou. A canonicidade é determinada por Deus e descoberta pelos
homens de Deus. A Bíblia constitui o "cânon", ou "medida" pela qual tudo
mais deve ser medido e avaliado pelo fato de ter autoridade concedida por
Deus. Sejam quais forem as medidas (i.e., os cânones) usadas pela igreja
para descobrir com exatidão que livros possuem essa autoridade canônica
ou normativa, não se deve dizer que "determinam" a canonicidade dos
livros. Dizer que o povo de Deus, mediante quaisquer regras de
reconhecimento, "determina" que livros são autorizados por inspiração de
Deus só confunde a questão. Só Deus pode conceder a um livro autoridade
absoluta e, por isso mesmo, canonicidade divina.
O sentido primário da palavra cânon aplicado às Escrituras é aplicado
na acepção ativa, i.e., a Bíblia é a norma que governa a fé. O sentido
secundário, segundo o qual um livro é julgado por certos cânones e é
reconhecido como inspirado (o sentido passivo), não deve ser confundido
com a determinação divina da canonicidade. Só a inspiração divina
determina a autoridade de um livro, i.e., se ele é canônico, de natureza
normativa.
A descoberta da canonicidade
O povo de Deus tem desempenhado um papel de cabal importância
no processo de canonização, ao longo dos séculos, ainda que tal papel não
tenha natureza determinadora. A comunidade de crentes arca com a tarefa
de chegar a uma conclusão sobre quais livros são realmente de Deus. A fim
de cumprir esse papel, a igreja deve procurar certos característicos próprios
da autoridade divina. Como poderia alguém reconhecer um livro inspirado
só por vê-lo? Quais são os elementos característicos que distinguem uma
declaração de Deus de um enunciado meramente humano? Vários critérios
estavam em jogo nesse processo de reconhecimento.
Os princípios de descoberta da canonicidade
Nunca deixaram de existir falsos livros e falsas mensagens (v. caps. 8
e 10). Por representarem ameaça constante, fez-se necessário que o povo
de Deus revisse cuidadosamente sua coleção de livros sagrados. Até
mesmo os livros aceitos por outros crentes ou em tempos anteriores foram
posteriormente questionados pela igreja. São discerníveis cinco critérios
básicos, presentes no processo como um todo: 1) O livro é autorizado —
afirma vir da parte de Deus? 2) É profético — foi escrito por um servo de
Deus? 3) É digno de confiança — fala a verdade acerca de Deus, do
homem etc? 4) É dinâmico — possui o poder de Deus que transforma
vidas? 5) É aceito pelo povo de Deus para o qual foi originariamente
escrito — é reconhecido como proveniente de Deus?
A autoridade de um livro. Como demonstramos antes (caps. 3 e 4),
cada livro da Bíblia traz uma reivindicação de autoridade divina. Com
freqüência a expressão categórica "assim diz o Senhor" está presente. Às
vezes o tom e as exortações revelam sua origem divina. Sempre existe uma
declaração divina. Nos escritos mais didáticos (os de ensino), existe uma
declaração divina a respeito do que os crentes devem fazer. Nos livros
históricos, as exortações ficam mais implícitas, e as declarações
autorizadas são mais a respeito do que Deus tem feito na história de seu
povo (que é "a história narrada por Deus"). Se faltasse a um livro a
autoridade de Deus, esse era considerado não-canônico, não sendo incluído
no cânon sagrado.
Vamos ilustrar esse princípio de autoridade no que se relaciona ao
cânon. Os livros dos profetas eram facilmente reconhecidos como
canônicos por esse princípio de autoridade. A expressão repetida "e o
Senhor me disse" ou "a palavra do Senhor veio a mim" é evidência
abundante de sua autoridade divina. Alguns livros não tinham nenhuma
reivindicação de origem divina, pelo que foram rejeitados e tidos como
não-canônicos. Talvez tenha sido o caso do livro dos justos e do livro das
guerras do Senhor, Outros livros foram questionados e desafiados quanto à
sua autoridade divina, mas por fim foram aceitos no cânon. É o caso de
Ester. Não antes de se tornar perfeitamente patente que a proteção de Deus
e, portanto, as declarações do Senhor a respeito de seu povo estavam
inqüestionavelmente presentes em Ester, recebeu este livro lugar
permanente no cânon judaico. Na verdade, o simples fato de alguns livros
canônicos serem questionados quanto à sua legitimidade é uma segurança
de que os crentes usavam seu discernimento. Se os crentes não estivessem
convencidos da autoridade divina de um livro, este era rejeitado.
A autoria profética de um livro. Os livros proféticos só foram
produzidos pela atuação do Espírito, que moveu alguns homens conhecidos
como profetas (2Pe 1.20,21). A Palavra de Deus só foi entregue a seu povo
mediante os profetas de Deus. Todos os autores bíblicos tinham um dom
profético, ou uma função profética, ainda que tal pessoa não fosse profeta
por ocupação (Hb 1.1).
Paulo exorta o povo de Deus em Gálatas, dizendo que suas cartas
deveriam ser aceitas porque ele era apóstolo de Cristo. Suas cartas não
foram produzidas por um homem comum, mas por um apóstolo; não "por
homem algum, mas por Jesus Cristo, e por Deus Pai, que o ressuscitou
dentre os mortos" (Gl 1.1). Suas cartas deviam ser acatadas porque eram
apostólicas — saíram de um porta-voz de Deus, ou profeta de Deus. Todos
os livros deveriam ser rejeitados caso não proviessem de profetas
nomeados por Deus; essa era a advertência de Paulo. Os crentes não
deviam aceitar livros de alguém que falsamente afirmasse ser apóstolo de
Cristo (2Ts 2.2), conforme advertência de Paulo também em 2Coríntios ti
.13 a respeito dos falsos profetas. As advertências de João sobre os falsos
messias e para que os crentes provassem os espíritos enquadram-se nessa
mesma categoria (1Jo 2.18,19 e 4.1-3). Foi por causa desse princípio
profético que a segunda carta de Pedro foi objetada por alguns da igreja
primitiva. Enquanto os pais da igreja não ficaram convencidos de que essa
carta não havia sido forjada, mas de fato viera da mão do apóstolo Pedro,
como seu primeiro versículo o menciona, ela não recebeu lugar permanente
no cânon cristão.
A confiabilidade de um livro. Outro sinal característico da inspiração
é o ser um livro digno de confiança. Todo e qualquer livro que contenha
erros factuais ou doutrinários (segundo o julgamento de revelações
anteriores) não pode ter sido inspirado por Deus. Deus não pode mentir; as
palavras do Senhor só podem ser verdadeiras e coerentes.
À vista desse princípio, os crentes de Beréia aceitaram os ensinos de
Paulo e pesquisaram as Escrituras, para verificar se o que o apóstolo estava
ensinando estava de fato de acordo com a revelação de Deus no Antigo
Testamento (At 17.11). O mero fato de um texto estar de acordo com uma
revelação anterior não indica que tal texto é inspirado. Mas a contradição
de uma revelação anterior sem dúvida seria indício de que o ensino não era
inspirado.
Grande parte dos apócrifos foi rejeitada por causa do princípio da
confiabilidade. Suas anomalias históricas e heresias teológicas os
rejeitaram; seria impossível aceitá-los como vindos de Deus, a despeito de
sua aparência de autorizados. Não podiam vir de Deus e ao mesmo tempo
apresentar erros.
Alguns livros canônicos foram questionados com base nesse mesmo
princípio. Poderia a carta de Tiago ser inspirada, se contradissesse o ensino
de Paulo a respeito da justificação pela fé e nunca pelas obras? Até que a
compatibilidade essencial entre os autores se comprovasse, a carta de Tiago
foi questionada por alguns estudiosos. Outros questionaram Judas por
causa de sua citação de livros não-confiáveis, pseudepigráficos (vv 9,14).
Desde que ficasse entendido que as citações feitas por Judas 1 não podiam
conferir nenhuma autoridade àqueles livros, assim como as citações feitas
por Paulo, de poetas não-cristãos (v. tb. At 17.28 e Tt 1.12), não poderia
conferir a esses nenhuma autoridade, nenhuma razão haveria para que a
carta de Judas fosse rejeitada.
A natureza dinâmica de um livro. O quarto teste de canonicidade, às
vezes menos explícito do que alguns dos demais, era a capacidade do texto
de transformar vidas: "... a palavra de Deus é viva e eficaz..." (Hb 4.12). O
resultado é que ela pode ser usada "para ensinar, para repreender, para
corrigir, para instruir em justiça" (2Tm 3.16,17).
O apóstolo Paulo revelou-nos que a habilidade dinâmica das
Escrituras inspiradas estava implicada na aceitação das Escrituras como
um todo, como mostra 2Timóteo 3.16,17. Disse Paulo a Timóteo: "... as
sagradas letras [...] podem fazer-te sábio para a salvação..." (v. 15). Em
outro texto, Pedro se refere ao poder de evangelização e de edificação
cristã da Palavra (1Pe 1.23; 2.2). Outros livros e mensagens foram
rejeitados porque apresentavam falsas esperanças (1Rs 22.6-8) ou faziam
rugir alarmes falsos (2Ts 2.2). Assim, não conduziam o crente ao
crescimento na verdade de Jesus Cristo. Assim dissera o Senhor:
"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (Jo 8.32). O ensino falso
jamais liberta; só a verdade possui poder emancipador.
Alguns livros da Bíblia, como Cântico dos Cânticos e Eclesiastes,
foram questionados por alguns estudiosos os julgarem isentos desse poder
dinâmico, capaz de edificar o crente. Desde que se convenceram de que
Cântico dos Cânticos não era sensual, mas profundamente espiritual, e que
Eclesiastes não é um livro cético e pessimista, mas positivo e edificante
(e.g., 12.9,10), pouca dúvida restou acerca de sua canonicidade.
A aceitação de um livro. A marca final de um documento escrito
autorizado é seu reconhecimento pelo povo de Deus ao qual
originariamente havia destinado. A Palavra de Deus, dada mediante seus
profetas e intendo sua verdade, deve ser reconhecida pelo seu povo.
Gerações posteriores de crentes procuraram constatar esse fato. É que, se
determinado livro fosse recebido, coligido e usado como obra de Deus,
pelas pessoas a quem originariamente se havia destinado, ficava
comprovada a sua canonicidade. Sendo o sistema de comunicações e de
transportes atrasado como era nos tempos antigos, às vezes a determinação
da canonicidade de um livro da parte dos pais da igreja exigia muito
tempo, e esforço. É por essa razão que o reconhecimento definitivo,
completo, por toda a igreja cristã, dos 66 livros do cânon das Escrituras
Sagradas exigiu tantos anos (v. cap. 9).
Os livros de Moisés foram aceitos imediatamente pelo povo de Deus.
Foram coligidos, citados, preservados e até mesmo impostos sobre as
novas gerações (v. cap. 3). As cartas de Paulo foram recebidas
imediatamente pelas igrejas às quais haviam sido dirigidas (1Ts 2.13), e até
pelos demais apóstolos (2Pe 3.16). Alguns escritos foram imediatamente
rejeitados pelo povo de Deus, por não apresentarem autoridade divina (2Ts
2.2). Os falsos profetas (Mt 7.21-23) e os espíritos de mentira deveriam ler
testados e rejeitados (1Jo 4.1-3), como se vê em muitos exemplos dentro da
própria Bíblia (cf. Jr 5.2; 14.14). Esse princípio de aceitação levou alguns a
questionar durante algum tempo certos livros da Bíblia, como 2 e 3João.
São de natureza particular e de circulação restrita; é compreensível pois,
que houvesse alguma relutância em aceitá-los, até que essas pessoas em
dúvida tivessem absoluta certeza de que tais livros haviam lido recebidos
pelo povo de Deus do século I como cartas do apóstolo Joio.
É quase desnecessário dizer que nem todas as pessoas deram pronto
reconhecimento às mensagens dos profetas de Deus. Deus assumia a defesa
rigorosa de seus profetas, contra todos quantos os rejeitassem (e.g., 1Rs
22.1-38). E, quando o Senhor era desafiado, mostrava quem era seu povo.
Quando a autoridade de Moisés foi desafiada por Core e seus asseclas, a
terra se abriu e os engoliu vivos (Nm 16). O papel do povo de Deus era
decisivo no reconhecimento da Palavra de Deus. O próprio Deus havia
determinado a autoridade que envolvia os livros do cânon que ele inspirara,
mas o povo de Deus também havia sido chamado para essa tarefa:
descobrir quais eram os livros dotados de autoridade, e quais eram falsos.
Para auxiliar o povo de Deus nessa descoberta, havia cinco testes de
canonicidade.
O procedimento para a descoberta da canonicidade
Quando nos pomos a discorrer sobre o processo de canonização, não
devemos imaginar uma comissão de pais da igreja, carregando pilhas de
livros, tendo diante dos olhos a lista desses cinco princípios orientadores.
Tampouco houve uma comissão ecumênica nomeada com o objetivo de
canonizar a Bíblia. O processo era muitíssimo natural e dinâmico. O
desenvolvimento da história real da criação do cânon do Antigo e do Novo
Testamento será discutido mais tarde (caps. 7 e 9). O que devemos registrar
aqui é como as cinco regras determinadoras da canonicidade foram 1
usadas no processo de descobrir que livros eram inspirados por Deus,
sendo, por isso, canônicos.
Alguns princípios estão apenas implícitos no processo. Embora todos
os cinco elementos estejam presentes em cada documento escrito e
inspirado, nem todas as regras de reconhecimento ficam visíveis na decisão
sobre a provável (ou improvável) inspiração de cada livro. Nem sempre
parecia imediatamente óbvio ao antigo povo de Deus que determinado
livro fosse "dinâmico" ou "autorizado". Era-lhes mais óbvio o fato de um
livro ser "profético" e "aceito". Você pode ver facilmente como a expressão
implícita "assim diz o Senhor" desempenhava papel de grande importância
na descoberta e na determinação dos livros canônicos, reveladores do plano
redentor global de Deus. No entanto, às vezes acontecia o contrário; em
outras palavras, o poder e a autoridade de um livro eram mais visíveis do
que sua autoria (e.g., Hebreus). De qualquer maneira, todas as cinco
características estavam presentes na descoberta e na determinação de cada
livro canônico, ainda que alguns desses princípios só fossem aplicados de
modo implícito.
Alguns princípios atuavam de modo negativo no processo. Algumas
das regras de reconhecimento atuavam de modo mais negativo que outras.
Por exemplo, o princípio da confiabilidade eliminava mais depressa os
livros não-canônicos, não tendo a mesma rapidez para indicar os
canônicos. Não existem ensinos falsos que, apesar disso, sejam canônicos;
no entanto, há muitos escritos que expõem a verdade sem jamais terem
sido inspirados. De modo semelhante, muitos livros que edificam ou
apresentam dinâmica espiritual positiva não são canônicos, embora
nenhum livro canônico deixe de ter importância no plano salvífico de
Deus.
Semelhantemente, um livro pode reivindicar autoridade sem ser
inspirado por Deus, como o mostram os muitos livros apócrifos, mas
nenhum livro pode ser canônico sem que seja revestido de autoridade
divina. Em outras palavras, se a um livro faltar autoridade, é certo que não
veio de Deus. Mas o simples fato de um livro reivindicar autoridade para si
mesmo não o torna, ipso facto, inspirado. O princípio da aceitação tem
função primordialmente negativa. Nem mesmo o fato de um livro receber
aceitação de parte do povo de Deus significa prova de sua inspirado.
Muitos anos depois, passadas algumas gerações de cristãos, alguns destes,
mal-informados a respeito da aceitação ou da rejeição pelo povo de Deus
dos livros propostos, atribuíram reconhecimento local, temporal, a certos
livros não-canônicos (e.g., alguns livros apócrifos; v. caps. 8 e 10). O
simples fato de um livro qualquer ter sido aceito em algum lugar, por
alguns crentes em Cristo, de modo algum constitui prova da canonicidade e
da inspiração de tal livro. O reconhecimento inicial de determinado livro,
pelo povo de Deus, que estava na melhor posição possível para testar a
autoridade profética desse livro, é elemento de cabal importância. Levou
algum tempo até que todos os segmentos das gerações posteriores de
cristãos ficassem totalmente informados a raspei to das circunstâncias
iniciais. Assim, a aceitação por parte desses cristãos posteriores é
importante, mas funciona como apoio adicional.
O princípio realmente essencial substitui todos os demais princípios.
No alicerce de todo o processo de reconhecimento existe um princípio
fundamental — o da natureza profética do livro. Se um livro houver sido
escrito por um profeta prestigiado e honrado de Deus, e se ele afirmar que
apresentará uma enunciação autorizada da parte de Deus, nem há
necessidade de formular as demais perguntas. É claro que o povo de Deus
reconheceu esse livro como poderoso e verdadeiro, quando lhes foi
entregue por um profeta de Deus. Quando não havia confirmação direta da
vocação desse profeta da parte de Deus (como freqüentemente havia, cf.
Êx 4.1-9), então a confiabilidade, a habilidade dinâmica desse livro e sua
aceitação pelo povo, ou seja, pela comunidade cristã original, seria
elemento essencial para o reconhecimento posterior de sua inspiração.
A questão de poder ou não a falta de confiabilidade afastar a
confirmação de um livro profético é puramente hipotética. Nenhum livro
concedido por Deus pode ser falso. Se um livro que se considera profético
apresenta falsidade inquestionável, é preciso que se reexaminem suas
credenciais proféticas. Deus não pode mentir. Dessa forma, os outros
quatro princípios servem para conferir o caráter profético dos livros do
cânon.
7. O desenvolvimento do cânon do Antigo
Testamento
A história da canonização da Bíblia é incrivelmente fascinante. Tratase
de um livro escrito e coligido ao longo de quase dois mil anos, sem que
cada autor estivesse consciente de como sua contribuição, i.e., como seu
"capítulo" se enquadraria no plano global. Cada contribuição profética era
entregue ao povo de Deus simplesmente com base no fato de que Deus
havia falado a esse povo mediante o profeta. De que maneira a mensagem
se encaixaria na história total era algo que o profeta desconhecia
inteiramente, e até mesmo para os crentes que de início ouviam, liam e
reconheciam a mensagem. Somente a consciência dos cristãos, capazes de
refletir nisso, em época posterior, é que poderia perceber a mão de Deus
movimentando cada autor, mão que também moveria a cada um para
produzir uma história global sobre a redenção de que só Deus mesmo
poderia ser o autor. Nem os profetas que compuseram os livros, nem o
povo de Deus que veio coligindo esses livros tiveram consciência de estar
edificando a unidade global dentro da qual cada livro desempenharia uma
função.
Algumas distinções preliminares
Deus inspirou os livros, o povo original de Deus reconheceu-os e
coligiu-os, e os crentes de uma época posterior distribuíram-nos por
categorias, como livros canônicos, de acordo com a unidade global que
neles entreviam. Eis o resumo da história da canonização da Bíblia. Vamos
agora explicar em detalhes algumas distinções importantes, implícitas
nesse processo.
Os três passos mais importantes no processo de canonização
Há três elementos básicos no processo genérico de canonização da
Bíblia: a inspiração de Deus, o reconhecimento da inspiração pelo povo de
Deus e a coleção dos livros inspirados pelo povo de Deus. Um breve
estudo de cada elemento mostrará que o primeiro passo na canonização da
Bíblia (a inspiração de Deus) cabia ao próprio Deus. Os dois passos
seguintes (reconhecimento e preservação desses livros), Deus os
incumbiria a seu povo.
Inspiração de Deus. Foi Deus quem deu o primeiro passo no
processo de canonização, quando de início inspirou o texto. Assim, a razão
mais fundamental por que existem 39 livros no Antigo Testamento é que só
esses livros, nesse número exato, é que foram inspirados por Deus. É
evidente que o povo de Deus não teria como reconhecer a autoridade
divina num livro, se ele não fosse revestido de nenhuma autoridade.
Reconhecimento por parte do povo de Deus. Uma vez que Deus
houvesse autorizado e autenticado um documento, os homens de Deus o
reconheciam. Esse reconhecimento ocorria de imediato, por parte da
comunidade a que o documento fora destinado originariamente. A partir do
momento que o livro fosse copiado e circulado, com credenciais da
comunidade de crentes, passava a pertencer ao cânon. A igreja universal,
mais tarde, viria a aceitar esse livro em seu cânon cristão. Os escritos de
Moisés foram aceitos e reconhecidos em seus dias (Êx 24.3), como
também os de Josué (Js 24.26), os de Samuel (1Sm 10.25) e os de Jeremias
(Dn 9.2). Esse reconhecimento seria confirmado também pelos crentes do
Novo Testamento, e principalmente por Jesus (v. cap. 3).
Coleção e preservação pelo povo de Deus. O povo de Deus
entesourava a Palavra de Deus. Os escritos de Moisés eram preservados na
arca (Dt 31.26). As palavras de Samuel foram colocadas "num livro, e o
pôs perante o Senhor" (1Sm 10.25). A lei de Moisés foi preservada no
templo nos dias de Josias (2Rs 23.24). Daniel tinha uma coleção dos
"livros" nos quais se encontravam "a lei de Moisés" e "os profetas" (Dn
9.2,6,13). Esdras possuía cópias da lei de Moisés e dos profetas (Ne
9,14,26-30). Os crentes do Novo Testamento possuíam todas as
"Escrituras" do Antigo Testamento (2Tm 3.16), tanto a lei como os profetas
(Mt 5.17).
A diferença entre os livros canônicos e outros escritos religiosos
Nem todos os escritos religiosos dos judeus eram considerados
Canônicos pela comunidade dos crentes. E óbvio que havia certa
importância religiosa em alguns livros primitivos como o livro dos justos
(Js 11). 13), o livro das guerras do Senhor (Nm 21.14) e outros (v. 1Rs
11.41). OS livros apócrifos dos judeus, escritos após o encerramento do
período do Antigo Testamento (c. 400 a.C), têm significado religioso
definido, mus jamais foram considerados canônicos pelo judaísmo oficial
(v. cap. 8). A diferença essencial entre escritos canônicos e não-canônicos é
que aqueles são normativos (têm autoridade), ao passo que estes não são
autorizados. Os livros inspirados exercem autoridade sobre os crentes; os
não-inspirados poderão ter algum valor devocional ou para a edificação
espiritual, mas jamais devem ser usados para definir ou delimitar doutrinas.
Os livros canônicos fornecem o critério para a descoberta da verdade,
mediante o qual todos os demais livros (não-canônicos) devem ser
avaliados e julgados. Nenhum artigo de fé deve basear-se em documento
não-canônico, não importando o valor religioso desse texto. Os livros
divinamente inspirados e autorizados são o único fundamento para a
doutrina . Ainda que determinada verdade canônica receba algum apoio
complementar da parte de livros não-canônicos, tal verdade de modo
algum confere valor canônico a tais livros. Esse apoio terá sido puramente
histórico, destituído de valor teológico autorizado. A verdade transmitida
pelas Escrituras Sagradas, e por nenhum outro meio, é que constitui cânon
ou fundamento das verdades da fé.
A diferença entre canonização e categorização dos livros da Bíblia
A incapacidade de distinguir as seções em que se divide o Antigo
Testamento hebraico (lei, profetas e escritos) dos estágios ou períodos em
que a coleção de livros se formou tem causado muita confusão. Durante
anos a teoria modelar da crítica tem sustentado que as Escrituras hebraicas
haviam lido canonizadas por seções, seguindo as datas alegadas de sua
composição: a lei (c. 400 a.C), os profetas (c. 200 a.C.) e os escritos (c. 100
a.C). Essa teoria originou-se na crença errônea, segundo a qual essa
categorização tripartida do Antigo Testamento representava seus estágios
de canonização. Como veremos em breve, não existe relação direta entre
essas categorias e os acontecimentos. Os livros das Escrituras judaicas
foram reagrupados várias vezes desde quando foram redigidos. Alguns
deles, de modo especial os que fazem parte dos escritos, foram redigidos e
aceitos pela comunidade judaica séculos antes das datas que os teóricos da
crítica lhes atribuem.
Compilação progressiva dos livros do Antigo Testamento
O primeiro e mais fundamental fato a respeito do processo de
canonização dos livros do Antigo Testamento é que essa primeira seção da
Bíblia não se constitui de três partes, mas, quando muito, de duas. As
referências mais antigas e mais repetidas do cânon empregam as seguintes
expressões: "Moisés e os profetas", "os profetas" ou simplesmente "os
livros". Em nenhuma parte das Escrituras, quer na literatura extrabíblica,
quer no período inicial da era cristã, existe alguma prova do chamado
terceiro estágio canônico, constituído de escritos que teriam sido
compostos e coligidos após a época da lei e dos profetas. No que diz
respeito à canonicidade, os chamados escritos sempre fizeram parte da
seção canônica comumente denominada profetas.
A evidência de um cânon constituído de duas partes
A classificação tríplice. No entanto, até mesmo antes da época do
Novo Testamento, havia uma tradição crescente, segundo a qual haveria
uma terceira seção que compreendia alguns livros do Antigo Testamento.
No prólogo do livro apócrifo Siraque (c. 132 a.C), há referência à "lei e os
profetas e os outros livros de nossos pais", lidos por seu avô (c. 200 a.C).
Por volta da época de Cristo, o filósofo judeu Filo fez uma distinção
tríplice do Antigo Testamento, ao falar de "[1] leis e [2] oráculos
transmitidos pela boca dos profetas, e [3] salmos e qualquer outra coisa que
estimule e aperfeiçoe o conhecimento e a vida consagrada" (De vita
contemplativa, 3,25). O próprio Jesus fez alusão a uma divisão tríplice,
quando falou: "na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos" (Lc 24.44).
Mais tarde um pouco, no século I, Josefo, o historiador judeu, referiu-se
aos 22 livros das Escrituras hebraicas, "cinco pertencentes a Moisés [...] os
profetas [...] em treze livros. Os quatro livros restantes [aparentemente Jó,
Salmos, Provérbios e Eclesiastes] contêm hinos a Deus, e preceitos para a
conduta humana (Contra Ápion, I,8). Por volta do século v d.C, o Talmude
judaico (Baba Bathra) relacionou onze livros numa terceira divisão
chamada os Escritos (Kethubhim). A Bíblia hebraica relaciona-os da
mesma forma até hoje (v. cap. 1).
Várias conclusões muito importantes podem ser tiradas desses dados,
Primeira: os fatos não mostram que a atual classificação de escritos, que
contêm 11 dos 22 livros, é anterior ao século v d.C. Segunda: a referência
mais antiga, segundo a qual a classificação dos livros possui uma terceira
divisão, recua até Josefo, que apresenta quatro seções. Essa é uma forte
evidência contra a reivindicação dos críticos, segundo os quais Daniel,
Crônicas, Esdras e Neemias teriam sido livros posteriores, relacionados
entre os escritos que não haviam sido canonizados senão no século I d.C.
Terceira: do total de 22 livros, alguns dos quais teriam sido colocados na
seção dos escritos, só havia quatro no início, chegando a onze entre os
séculos I e V. Nenhum desses fatos dá apoio à concepção de que houvesse
um grupo de livros, dentre os quais Daniel, Crônicas, Esdras e Neemias,
não incluídos no cânon judaico até o século I d.C. É certo que houve uma
tendência no início para colocar os livros do Antigo Testamento numa
classificação tríplice (por razões que não se entendem totalmente), e o
número de livros nessa seção foi crescendo com o passar dos anos.
Todavia, o número e as diferentes disposições desses livros não tinham
nenhuma relação essencial com a divisão dupla, básica, nem com o
desenvolvimento do cânon do Antigo Testamento.
A canonização em duas partes. As referências mais antigas e
persistentes ao cânon do Antigo Testamento mostram que se tratava de uma
coletânea de livros proféticos com duas divisões, a lei de Moisés e os
profetas que surgiram depois dele. Vamos rastrear essas evidências na
história.
Antes mesmo do exílio (século vi a.C), já havia indícios de uma
classificação dos livros em duas seções: Moisés e os profetas depois dele.
Explica-se isso pela atribuição de uma posição especial a Moisés, o
grande legislador, e por causa do estabelecimento de uma comunidade de
profetas depois de Moisés (1Sm 19.20). Pela época do exílio, Daniel se
referira aos "livros", os quais seriam os da "lei de Moisés" e "os profetas"
(Dn 9.2,6,11). O profeta pós-exílico Zacarias (século vi a.C) menciona:
“...não ouvissem a lei, nem as palavras que o Senhor dos exércitos enviara
pelo seu Espírito mediante os profetas" (Zc 7.12). Neemias faz a mesma
distinção (Ne 9.14,29,30).
Durante o período intertestamentário, prossegue essa mesma
distinção dupla. Deus falava mediante "a lei e os profetas" (2Mc 15.9). O
Manual de disciplina da comunidade de Qumran coerentemente se refere
ao Antigo Testamento como a lei e os profetas (1.3; 8.15; 9.11). Por fim, no
Novo Testamento essa distinção dupla de lei e profetas é mencionada pelo
menos dezenas de vezes.
Vários fatos significativos brotam de um estudo das referências do
Nevo Testamento à "lei" e aos "profetas". Em primeiro lugar, trata-se de
uma expressão que abrange todos os livros do cânon hebraico. Lembremonos
(v. cap. 3) de que cerca de 18 dos 22 livros do Antigo Testamento
hebraico são mencionados autorizadamente no Novo Testamento (todos,
menos Juizes, Crônicas, Ester e Cântico dos Cânticos). Embora não haja
citação clara desses quatro livros, há alusões a eles. Quando Jesus disse: "A
lei e os profetas duraram até João" (Lc 16.16,29,31), estava referindo-se a
todos os escritos inspirados anteriores aos tempos do Novo Testamento.
Mateus 22.40 traz a mesma alusão: "Destes dois mandamentos [sobre o
amor] depende toda a lei e os profetas". Jesus usou a mesma expressão
quando ressaltou as verdades abrangentes, messiânicas, do Antigo
Testamento: "E começando por Moisés, e por todos os profetas, explicoulhes
o que dele se achava em todas as Escrituras" (Lc 24.27). Lucas
informa-nos que "a lei e os profetas" eram lidos na sinagoga no sábado (At
13.15). Ao tentar convencer os judeus de que era completamente ortodoxo,
o apóstolo Paulo afirmou crer "em tudo que está escrito na lei e nos
profetas" (Lc 24.14; cf. 26.22). As referências ao Antigo Testamento como
a lei e os profetas no sermão do monte é de importância crucial (Mt 5.17;
cf. Rm 1.2). Declarou Jesus: "Não penseis que vim destruir a lei ou os
profetas; não vim para destruí-los, mas para cumpri-los. Em verdade vos
digo que até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá
da lei, sem que tudo seja cumprido" (Mt 5.17,18). Uma declaração forte
como essa dificilmente estaria deixando de lado uma parte das Escrituras
judaicas, mas abrangendo todos os livros.
A partir desses fatos, chegamos à conclusão de que a referência
modelar a todo o cânon das Escrituras do Antigo Testamento edifica-se
sobre a distinção entre Moisés e os profetas que viriam depois. Isso se
iniciou numa época anterior ao exílio e estabeleceu-se sistematicamente até
a época de Cristo. Visto que o Novo Testamento cita de modo específico
todos os 22 livros do cânon hebraico, reconhecido pelos judeus do século I
d.C, chegamos também à conclusão de que os limites ou a extensão desse
cânon foram definidos para nós. O cânon hebraico contém todos os 24
livros que posteriormente (século v d.C.) seriam relacionados em
categorias tríplices: a lei, os profetas e os escritos. Assim, seja qual for a
origem da tendência para dividir os dezenove "profetas" em duas seções de
oito "profetas e onze escritos", sabemos sem sombra de dúvida não ser essa
a base de um desenvolvimento progressivo do cânon, em três estágios, que
só se completaria quando os escritos viessem a ser aceitos no século I d.C.
O desenvolvimento do cânon do Antigo Testamento
Não existem dados suficientes para compor a história completa da
formação do cânon do Antigo Testamento. No entanto, existem dados
disponíveis que permitem traçar um esquema global e ilustrar alguns elos
de vital importância. O resto precisa ser projetado, lançando mão do
exercício de julgamento racional. O primeiro fator significativo no
desenvolvimento do cânon do Antigo Testamento foi a coleção progressiva
dos livros proféticos. Tais livros foram preservados como escritos divinos
autorizados.
A evidência da coleção progressiva dos livros proféticos. Desde o
início, os escritos proféticos foram reunidos pelo povo de Deus e
reverenciados Como escritos sagrados, autorizados, de inspiração divina.
As leis de Moisés foram preservadas ao lado da arca no tabernáculo de
Deus (Dt 31.24-26) e, mais tarde, no templo (2Rs 22.8). Josué acrescentou
suas palavras "no livro da lei de Deus. Então tomou uma grande pedra, e a
erigiu ali [...] junto ao santuário do Senhor" (Js 24.26). Samuel informou os
israelitas a respeito dos deveres de seu rei "e escreveu-o num livro, e o pôs
perante o Senhor" (1Sm 10.25).
Samuel cuidava de uma escola de profetas, cujos alunos eram
chamados "filhos dos profetas" (1Sm 19.20). De acordo com Ezequiel,
havia um registro oficial de profetas e seus escritos no templo (Ez 13.9).
Daniel refere-se aos "livros" que continham a "lei de Moisés" e os
"profetas" (9.2,6,11). Os autores dos livros de Reis e Crônicas estavam
cientes da existência de muitos livros escritos pelos profetas que narravam
toda a história anterior ao exílio (v. abaixo "A evidência da continuidade
profética").
Essa evidência genérica da existência de uma coleção progressiva de
livros proféticos se confirma pelo uso específico de escritos de profetas
antigos feito por profetas que viriam mais tarde. Os livros de Moisés são
Citados por todo o Antigo Testamento, desde Josué (1.7) até Malaquias
(4.4), incluindo-se a maior parte dos grandes livros intermediários (1Rs
2,3; 2Rs 14.6; 2Cr 14.4; Jr 8.8; Dn 9.11; Ed 6.18 e Ne 13.1). Em Juízes
1.1,20,21 e 2.8, há referências a Josué e a acontecimentos narrados em seu
livro. Os livros de Reis citam a vida de Davi conforme narrada nos livros
de Samuel (V. 1Rs 3.14; 5.7; 8.16; 9.5). Crônicas faz uma revisão da
história de Israel registrada desde Gênesis até Reis, incluindo-se o elo
genealógico mencionado apenas em Rute (1Cr 2.12,13). Neemias 9 resume
a história de Israel Conforme o registro de Gênesis a Esdras. Um dos
salmos de Davi, o salmo 18, está registrado em 2 Samuel 22. Há
referências aos Provérbios de Salomão e ao Cântico dos Cânticos em 1Reis
4.32. Daniel cita Jeremias 25 (Dn 9.2). O profeta Jonas recita parte de
muitos salmos (Jn 2). Ezequiel menciona Jó e Daniel (Ez 14.14,20). Nem
todos os livros de determinada época são mencionados em livros de época
posterior; todavia, há menções suficientes para demonstrar que existia uma
coleção crescente de livros divinamente inspirados, dotados da autoridade
divina, de que os profetas subseqüentes faziam uso, citando-os em suas
profecias.
A evidência da continuidade profética. Houve, pois, uma coleção
crescente de escritos proféticos: o Antigo Testamento em formação. Cada
profeta que surgia ligava sua história aos elos da história existente, narrada
pelos seus predecessores, formando uma corrente contínua de livros.
Visto que o último capítulo de Deuteronômio não se apresenta como
profecia, entendemos que Moisés não escreveu a respeito de seu próprio
sepultamento. É provável que Josué, seu sucessor nomeado por Deus,
tenha registrado a morte de Moisés (Dt 34). O primeiro versículo de Josué
está ligado a Deuteronômio: "Depois da morte de Moisés, servo do Senhor,
disse o Senhor a Josué, filho de Num...". Josué acrescentou algum texto ao
de Moisés e colocou-o no tabernáculo (Js 24.26). Juizes retoma o texto no
final de Josué, dizendo: "Depois da morte de Josué, os filhos de Israel
perguntaram ao Senhor...". Todavia, o registro não ficou completo senão
nos dias de Samuel. Isso se demonstra repetidamente pela declaração:
"Naqueles dias não havia rei em Israel" (Jz 17.6; 18.1; 19.1; 21.25).
A essa altura, a continuidade profética se estabeleceu mediante uma
escola dirigida por Samuel (1Sm 19.20). Dessa escola haveria de surgir
uma série de livros proféticos que cobririam toda a história dos reis de
Israel e de Judá, como a amostragem seguinte nos ilustra:
1. A história de Davi foi escrita por Samuel (cf. 1Sm), por Nata e por Gade
(1Cr 29.29).
2. A história de Salomão foi registrada pelos profetas Nata, Aías e Ido (2Cr
9.29).
3. Os atos de Roboão foram escritos por Semaías e por Ido (2Cr 12.15)
4. A história de Abias foi acrescentada pelo profeta Ido (2Cr 13.22).
5. A história do reinado de Josafá foi registrada pelo profeta Jeú (2Cr
20.34).
6. A história do reinado de Ezequias foi registrada por Isaías (2Cr 32.32).
7. A história do reinado de Manasses foi registrada por profetas anônimos
(2Cr 33.19).
8.Os demais reis também tiveram suas histórias narradas pelos profetas
(2Cr 35.27).
Qualquer pessoa que esteja familiarizada com os livros bíblicos que
abrangem o período de Davi até o exílio, verá que os livros proféticos
relacionados acima não são idênticos, aos livros de Samuel, Reis e
Crônicas. Em cada caso repete-se que "o resto dos atos" do rei Fulano de
Tal está escrito "no livro" do profeta Beltrano. Os livros bíblicos parecem
resumos proféticos tirados de textos mais longos, registrados por profetas
posteriores, numa sucessão iniciada por Samuel.
É interessante ressaltar que não houve menção de Jeremias, o qual
escreveu antes do exílio judaico e durante esse exílio, ter escrito uma
dessas histórias. No entanto, Jeremias era um profeta escritor, como
mostram seus livros (Jeremias e Lamentações) e como ele claramente
afirma numerosas ocasiões (cf. Jr 30.2; 36.1,2; 45.1,2; 51.60,63). Aliás, o
escriba Baruque nos informa que Jeremias contava com a ajuda de um
secretário. Falando de Jeremias, ele confessa: "Com sua boca ditava-me
todas estas palavras, e eu as escrevia no livro com tinta" (Jr 36.18; v. tb.
45.1). Além disso, o último capítulo de Reis corresponde dos textos de
Jeremias 2, 39,40 e 41. Esses são outros indícios de que Jeremias era
responsável r ambos os livros. Mais tarde, no exílio, Daniel afirma ter tido
acesso aos livros de Moisés e dos profetas. Menciona não só Jeremias,
dentre eles, mas cita a predição do cativeiro de setenta anos, extraída do
capítulo 25 (cf. Dn 9.2,6,11). Com base nesses fatos, é razoável supor que
o resumo dos escritos proféticos, que tomou a forma dos livros bíblicos dos
Reis, teria sido obra de Jeremias. Assim, a continuidade dos profetas a
partir de Moisés, Josué e Samuel se completaria com as obras de Jeremias.
Durante o exílio, Daniel e Ezequiel continuaram o ministério
profético. Ezequiel reconheceu um registro oficial de profetas nos arquivos
do templo. Ele declarou que os falsos profetas "na congregação do meu
povo não estarão, nem serão inscritos nos registros da casa de Israel" (Ez
13.9). Ezequiel referiu-se a Daniel por nome como notável servo de Deus
(Ez l4.14,20). Visto que Daniel possuía uma cópia dos livros de Moisés e
dos profetas, dos quais o livro de Jeremias, podemos presumir
razoavelmente que a comunidade judaica no exílio babilônico possuía os
livros de Gênesis a Daniel.
Depois do exílio, Esdras, o sacerdote, voltou da Babilônia levando
consigo os livros de Moisés e dos profetas (Ed 6.18; Ne 9.14,26-30). Nos
de Crônicas sem dúvida ele registrou seu relato sacerdotal da história de
Judá e do templo (v. Ne 12.23). Crônicas está ligado a Esdras-Neemias
pela repetição do último versículo de um, como o primeiro versículo do
outro.
Com Neemias completa-se a cronologia profética. Cada profeta,
desde Moisés até Neemias, contribuiu para a coleção sempre crescente de
que fora preservada pela comunidade dos profetas a partir de Samuel. Os
22 (24) livros das Escrituras hebraicas foram escritos por profetas,
preservados pela comunidade dos profetas e reconhecidos pelo povo de
Deus. Até agora não existem evidências de que outros livros, chamados
"escritos", houvessem alcançado canonização depois dessa época (c.
400a.C)
A evidência de que o cânon do Antigo Testamento se concluiu com os
profetas. Até agora mostramos que as Escrituras hebraicas como um todo
haviam sido coligidas em duas grandes seções: os cinco livros de Moisés e
os dezessete (ou dezenove) profetas que sucederam a Moisés.
Demonstramos também que houve continuidade nesses escritos proféticos;
cada profeta apoiou-se na autoridade dos escritos anteriores, de outros
profetas, e acrescentou sua contribuição à crescente coleção das Escrituras
Sagradas. Na época de Neemias (c. 400 a.C), a sucessão profética havia
produzido e coligido os 22 livros do cânon hebraico. Vamos agora
comprovar esta última argumentação, e demonstrar que não havia uma
terceira seção do cânon, escrita e reconhecida, depois dessa época. As
evidências, resumidamente, são as seguintes:
1. Não se explorou o chamado Concilio de Jâmnia (c. 90 d.C), época
em que, segundo se afirma, a terceira seção dos escritos teria sido
canonizada. Para os judeus, não houve um concilio autorizado. Realizou-se
apenas uma reunião de especialistas. Assim, não houve um oficial, nem
corpo de oficiais dotados de autoridade, a fim de reconhecer o cânon. Por
isso, não houve canonização de livros em Jâmnia.
2. O livro de Daniel, que na opinião da alta crítica pertencia à seção
de escritos, porquanto era tido como livro mais recente (século u a.C.) e
não-profético, havia sido relacionado por Josefo entre os livros dos
profetas. Dos 22 livros, dissera Josefo, só quatro, talvez Jó, Salmos,
Provérbios e Eclesiastes, pertenciam à terceira seção. Daniel, sendo um dos
outros livros, deve ter sido relacionado entre os profetas, por Josefo. A
descoberta de um fragmento antigo de Daniel, entre os rolos do mar Morto
(v. cap. 12) e a referência que Jesus fez a Daniel como profeta confirmam j
essa posição.
3. O Novo Testamento cita quase todos os livros do cânon hebraico;
mesmo os chamados escritos. No entanto, o Novo Testamento relaciona-os
a todos claramente sob a dupla classificação de lei e profetas (cf. Mt ' 5.17;
Mc 13.11 e Lc 24.27).
4. O livro de Salmos, relacionado na terceira seção por Josefo, fazia
parte dos profetas. Jesus usou a expressão "Moisés [...] Profetas e [...]
Salmos" num paralelismo com a expressão "Moisés e todos os profetas"
(Lc 24.27,44). Jesus falou aos judeus e citou um salmo, dizendo: "está
escrito na vossa lei" (Jo 10.34,35), identificando-a como Escrituras, a
Palavra de Deus. Tudo isso mostra com máxima clareza que os Salmos
faziam parte das Escrituras judaicas canônicas, conhecidas como "a Lei e
os profetas". Na verdade, o Novo Testamento com toda a autoridade cita
limos como Escrituras, mais do que qualquer outro livro do Antigo
Testamento. Isso também comprova que os Salmos eram considerados
canônicos antes de 100 a.C.
5. De acordo com Josefo (Contra Ápion, i,8) e com o Talmude, a
sucessão | profetas encerrou-se com Malaquias nos dias de Neemias. Assim
registra o Talmude: "Depois dos últimos profetas, Ageu, Zacarias e
Malaquias, o Espírito Santo apartou-se de Israel". Além disso, jamais o
3VO Testamento cita algum outro livro, depois de Malaquias, como
autorizado.
Nossa investigação demonstra que, no que diz respeito às evidências,
o cânon do Antigo Testamento se completou por volta de 400 a.C. Havia
duas seções principais: a lei e os profetas. Quase todos os 22 (24) livros
distribuídos entre as duas seções são mencionados pelo Novo Testamento
como Sagradas Escrituras. Não existe apoio escriturístico nem histórico
para a teoria de uma terceira divisão conhecida como "escritos", que estaria
aguardando canonização em data posterior. Em vez disso, os livros
inspirados foram incorporados ao cânon sob a denominação de "a lei e
profetas". Essa canonização foi um processo duplo. Sejam quais forem os
fatores que conduziram a uma categorização tríplice, paralela e
subseqüente desses livros do Antigo Testamento, um fato parece salientarse
com toda clareza — o cânon completo do Antigo Testamento é
mencionado sempre como "a lei e os profetas".
8. A extensão do cânon do Antigo
Testamento
A aceitação inicial dos 22 livros (correspondentes exatamente aos
nossos 39) das Escrituras hebraicas não resolveu a questão de uma vez por
todas. Estudiosos de eras posteriores, nem sempre totalmente conscientes
dos fatos a respeito dessa aceitação original, tornavam a levantar questões
concernentes a determinados livros. A discussão deu ensejo a que surgisse
uma terminologia técnica. Os livros bíblicos aceitos por todos eram
chamados "homologoumena" (lit, falar como um). Os livros bíblicos que
em certa ocasião tivessem sido questionados por alguns foram
classificados como "antilegomena" (falar contra). Os livros não-bíblicos
rejeitados por todos foram intitulados "pseudepígrafos" (falsos escritos).
Uma quarta categoria compreendia livros não-bíblicos aceitos por alguns,
mas rejeitados por outros, dentre os quais os livros questionáveis,
chamados "apócrifos" (escondidos ou duvidosos). Nosso tratamento girará
em torno dessa classificação em quatro tipos.
Os livros aceitos por todos — homologoumena
A canonicidade de alguns livros jamais foi desafiada por nenhum dos
grandes rabis da comunidade judaica. Desde que alguns livros foram
aceitos pelo povo de Deus como documentos produzidos pela mão dos
profetas de Deus, continuaram a ser reconhecidos como detentores de
Inspiração e de autoridade divina pelas gerações posteriores. Trinta e
quatro dos 39 livros do Antigo Testamento podem ser classificados como
"homologoumena". Os cinco excluíveis seriam Cântico dos Cânticos,
Eclesiastes, Ester, Ezequiel e Provérbios. Visto, porém, que nenhum desses
livros foi alvo de objeção muito séria, nossa atenção pode voltar-se para os
outros livros.
Os livros rejeitados por todos —pseudepígrafos
Grande número de documentos religiosos espúrios que circulavam
entre a antiga comunidade judaica são conhecidos como "pseudepígrafos".
Nem tudo nesses escritos "pseudepigráficos" é falso. De fato, a maior parte
desses documentos surgiu de dentro de um contexto de fantasia ou tradição
religiosa, possivelmente com raízes em alguma verdade. Com freqüência a
origem desses escritos estava na especulação espiritual, a respeito de algo
que não ficou bem explicado nas Escrituras canônicas. As tradições
especulativas a respeito do patriarca Enoque, por exemplo, sem dúvida são
a raiz do livro de Enoque. De maneira semelhante, a curiosidade a respeito
da morte e da glorificação de Moisés sem dúvida alguma acha-se por trás
da obra Assunção de Moisés. No entanto, essa especulação não significa
que não exista verdade nenhuma nesses livros. Ao contrário, o Novo
Testamento refere-se a verdades implantadas nesses dois livros (v. Jd
14,15) e chega a aludir à penitência de Janes e Jambres (2Tm 3.8).
Entretanto, esses livros não são mencionados como dotados de autoridade,
como Escrituras inspiradas. À semelhança das citações que Paulo faz de
alguns poetas não-cristãos, como Arato (At 17.28), Menânder (1Co 15.33)
e Epimênides (Tt 1.12), trata-se tão-somente de verdades verificáveis,
contidas em livros que em si mesmos nenhuma autoridade divina têm. A
verdade é sempre verdade, não importa onde se encontre, quer pronunciada
por um poeta pagão, quer por um profeta pagão (Nm 24.17), por um
animal irracional e mudo (Nm 22.28) ou mesmo por um demônio (At
16.17).
Observe que nenhuma fórmula como "está escrito" ou "segundo as|
Escrituras" é utilizada quando o escritor sagrado se refere a tais obras!
"pseudepigráficas". É possível que o fato mais perigoso a respeito desses
falsos escritos é que alguns elementos da verdade são apresentados comi
palavras de autoridade divina, num contexto de fantasias religiosas que em
geral contêm heresias teológicas. É importante que nos lembremos! de que
Paulo cita apenas aquela faceta da verdade, e não o livro pagão j como um
todo, como conceito a que Deus atribuiu autoridade e fez constar do Novo
Testamento.
A natureza dos pseudepígrafos
Os pseudepígrafos do Antigo Testamento contêm os extremos da
fantasia religiosa judaica expressos entre 200 a.C. e 200 d C Alguns desses
livros são inofensivos teologicamente (e.g., Sl 151), mas outros contêm
erros históricos e claras heresias. Desafia-se com vigor a genuinidade
desses livros pelo fato de haver quem afirme que foram escritos por autores
bíblicos. Os pseudepígrafos" refletem o estilo literário vigente num período
muito posterior ao encerramento dos escritos proféticos, de modo que
muitos desses livros imitam o estilo apocalíptico de Ezequiel, de Daniel e
de Zacarias -ao referir-se a sonhos, visões e revelações. No entanto,
diferentemente desses profetas, os "pseudepígrafos" com freqüência
tornam-se mágicos. Os pseudepígrafos" ressaltam, sobretudo, um brilhante
futuro messiânico, cheio de recompensas para todos quantos vivem em
sofrimento e abnegação. Sob a superfície existe, com freqüência, um
motivo religioso inocente, porém desencaminhado. Todavia, a infundada
reivindicação de autoridade divina, o caráter altamente fantasioso dos
acontecimentos e os ensinos questionáveis (e até mesmo heréticos) levaram
os pais do judaísmo a considerá-los espúrios. O resultado, pois, é que tais
livros foram corretamente rotulados de "pseudepígrafos".
O número dos pseudepígrafos
A coleção modelar de "pseudepígrafos" contém dezessete livros.
Acrescente-se o salmo 151, que se encontra na versão do Antigo
Testamento feita pelos Setenta. A lista principal é a seguinte: